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A Opinião Consultiva n° 10/89 da Corte IDH: a força da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem

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A Opinião Consultiva n° 10/89 da Corte IDH: a força da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem

Cláudio Cerqueira Bastos Netto[1]

     Em 14 de julho de 1989, a Corte Interamericana concedeu a Opinião Consultiva (OC) n° 10, que trata da interpretação da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (DADDH). Tratou-se de uma relevante questão para o Direito Internacional: qual o status jurídico do referido documento, criado em 1948, antes mesmo do advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos?

     A OC foi solicitada pela Colômbia e se refere à interpretação da  DADDH . O Estado questiona se o art. 64 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) autoriza a Corte IDH a prestar opinião consultiva sobre interpretação da DADDH.

     O Estado colombiano adiciona que a DADDH não é tratado propriamente dito, dado que é uma declaração. No entanto, acredita que é necessário que haja determinação do status normativo da DADDH no sistema interamericano de direitos humanos (doravante SIDH)[2]. Ainda, é necessário saber se a Corte IDH tem jurisdição para interpretar a DADDH ao amparo do referido artigo 64, e, em caso positivo, qual é o alcance dessa jurisdição (§2).

     Alguns Estados enviaram observações escritas sobre a solicitação colombiana à Corte IDH. Peru e Uruguai entendem que a Corte possui competência para dar OC sobre interpretação da DADDH. A Costa Rica observa que: DADDH não é tratado no sentido estabelecido pelo Direito Internacional. Logo, art. 64 não faculta a Corte IDH a interpretar tal declaração. Contudo, DADDH pode ser usada para interpretar outros instrumentos jurídicos, ou para verificar que os direitos por ela reconhecidos sejam elevados à categoria indiscutível de costume internacional. (§10)

     Uma das observações mais importantes é a dos EUA, que afirmam, de forma contundente, que: a DADDH não foi redigida como instrumento jurídico, diferente da CADH, e carece de precisão necessária para resolver dúvidas legais complexas. Assim, a DADDH não estabelece obrigações vinculantes, e tem valor de declaração de princípios básicos, não obrigatórios, de caráter moral e caráter político e é base para velar pelo compromisso geral de proteção aos DH. EUA considera que uma reinterpretação da DADDH de modo a entendê-la como direito representaria debilitação do processo internacional de criação de direito, no qual os Estados assumem voluntariamente obrigações legais específicas. (§12)

     Para responder o questionamento, trata-se primeiramente da admissibilidade da solicitação colombiana. A Corte IDH entende que, mesmo se aceita a tese de a DADDH não ser um tratado, não é inadmissível a solicitação de OC enviada pela Colômbia. (§23) O Estado pretende saber se o art. 64 da própria CADH autoriza que a Corte IDH dê opiniões consultivas sobre a DADDH. Este artigo autoriza a Corte a dar OC sobre a interpretação da CADH, então se cumprem os requisitos de admissibilidade. (§24)

     Então, passa-se à análise do mérito. Em primeiro lugar, é necessário definir se a DADDH é um tratado, pois o artigo 64.1 autoriza a Corte IDH a interpretar a CADH ou “outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos”. Entende-se que é claro que a DADDH não é um tratado de acordo com a definição de tratado da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969) e da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais (1986). (§33)

     Contudo, a Corte IDH entende que o fato da DADDH não ser um tratado não implica que ela não pode emitir OC que contenha interpretações da DADDH. Observa-se que o Preâmbulo e o art. 29.d, ambos da CADH, fazem referência à DADDH. Por isso, entende-se que pode ser necessário que a Corte interprete a DADDH ao exercer sua jurisdição consultiva. (§§35-36)

     A Corte IDH afirma que não é à luz do que foi estimado em 1948 que se deve definir o status jurídico da Declaração, mas que será determinada a partir do momento atual, diante do que hoje é o sistema interamericano, em consideração à evolução experimentada desde a adoção da DADDH. É feita referência à Opinião Consultiva sobre o caso Namíbia, prestada pela Corte Internacional de Justiça, na qual se entendeu que um instrumento internacional deve ser interpretado e aplicado de acordo com o conjunto do sistema jurídico em vigor no momento em que a interpretação tem lugar[3]. (§37) Também é citado o caso Barcelona Traction, no qual se entendeu que existe uma obrigação erga omnes de respeitar certos direitos fundamentais básicos[4]. (§38)

     Ademais, entende-se que os Estados membros da OEA, por meio dos órgãos desta, reconheceram que os direitos humanos aos quais se refere a Carta da OEA são os direitos protegidos pela Declaração, e que não se pode interpretar e aplicar a Carta da OEA em matéria de direitos humanos sem integrar suas normas pertinentes com as disposições correspondentes da DADDH. Para chegar a essa conclusão, são analisadas resoluções da Assembleia Geral da OEA. Cita-se igualmente o Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos[5] ( CIDH) (§§39-40).

     Ainda, afirma-se que a Assembleia Geral da OEA reconheceu reiteradamente que a DADDH é uma fonte de obrigações internacionais dos Estados Membros da OEA. A Resolução n. 314 (VII-0/77), de 1977, pede à CIDH a elaboração de um estudo sobre a obrigação de cumprir os compromissos adquiridos na DADDH. Na Resolução n. 371 (VIII-0/78), de 1978, a Assembleia Geral reafirma seu compromisso de promover o cumprimento da DADDH, e a Resolução n. 370 (VIII-0/78), do mesmo ano, refere-se aos compromissos internacionais de respeitar os direitos reconhecidos pela DADDH. Da mesma forma, o Preâmbulo da Convenção Americana para Prevenir e Sancionar a Tortura, adotada em Assembleia Geral de 1985, faz referência à DADDH. (§42)

     Assim, entende-se que a DADDH é fonte de obrigações internacionais, no que for pertinente e em relação com a Carta da OEA. (§45) Para os Estados partes na CADH, esta é a fonte concreta de suas obrigações. No entanto, por força do artigo 29.d, os Estados não se escusam das obrigações descritas pela DADDH, por terem ratificarem a CADH. (§46)

     Assim, a Corte IDH entendeu, unanimemente, que é competente a dar a OC, e que o artigo 64.1 autoriza a Corte a dar OCs sobre a interpretação da DADDH, dentro dos limites de sua competência em relação à Carta da OEA e à CADH, ou outros tratados de direitos humanos concernentes aos Estados americanos.

     Dentre os pontos relevantes que podemos destacar dessa OC está o uso da interpretação sistemática dos tratados. A DADDH possui seu status jurídico de declaração, desde sua concepção. No entanto, demonstra-se nessa OC que a Declaração possui efeitos jurídicos, que são permitidos e abarcados pelas diretrizes interpretativas contemporâneas do Direito Internacional, com base no artigo 31 da CVDT, ao se fazer uma interpretação sistemática da Carta da OEA e da CADH. O conteúdo e o alcance desses tratados são definidos usando a DADDH como parte do sistema que prevê a proteção internacional dos direitos humanos no âmbito interamericano. Ademais, quando interpretada como parte do sistema estabelecido pela Carta da OEA e/ou da CADH, podemos constatar a existência de obrigações internacionais, que tem origem nestes tratados.

     Sobre esse aspecto, pode se fazer um paralelo com a teoria desenvolvida por Siddharta Legale, que entende que a CADH funciona como um atracadouro de fontes, de modo a determinar que outros tratados sejam interpretados de modo a ampliar a normatividade da CADH[6]. Segundo Legale, é necessário que os instrumentos internacionais que tratam da proteção dos direitos humanos sejam interpretados de forma interdependente.

     Também é oportuno tratar da função da CIDH. A OC destaca, em seu parágrafo 45, que o Estatuto da CIDH define, em seus artigos 1.2.b e 20, a competência desta em respeito aos direitos humanos enunciados na DADDH. O uso da palavra “competência”, no entanto, pode não ser o mais correto, dado que a CIDH não é um órgão dotado de jurisdição. Entende-se que o procedimento de análise dos casos de violações de direitos humanos a ela submetidos é quasi judicial, ou seja, tem características semelhantes à de um processo judicial, mas é realizada perante um órgão que não é um tribunal. Logo, a CIDH não pode reconhecer a responsabilidade internacional do Estado.

     Como vimos anteriormente, o Regulamento da CIDH supra transcrito enuncia a Declaração como um instrumento a ser aplicado pela Comissão. Entende-se que a CIDH pode fiscalizar e promover a proteção dos direitos humanos em relação a todos os 35 Estados membros da OEA. Dessa maneira, é comum que a CIDH trate de violações de direitos humanos ocorridas nos países que não são signatários da CADH, como Canadá, Cuba, Estados Unidos, entre outros[7]. Esses países estão vinculados ao procedimento da CIDH por força da Carta da OEA e da DADDH, além das respectivas resoluções da AG citadas na OC n° 10, em seu parágrafo 42.

     Assim, a DADDH pode ser usada como parâmetro para analisar violações de direitos humanos tanto nos casos avaliados no procedimento das petições recebidas sobre casos específicos, como nos relatórios anuais sobre a situação dos direitos humanos nos países da região. É o que ocorre, por exemplo, no Informe Anual 2016[8], no qual se observa a necessidade do Estado cubano de fazer-se respeitar e cessar as violações dos direitos protegidos pela Declaração. Mais especificamente, requer-se de Cuba que garanta direitos como os previstos no artigo VII (Direito de proteção à maternidade e à infância), no artigo VIII (Direito de residência e trânsito), e no artigo XXVI (Direito a processo regular), por exemplo.

     Além do mais, mesmo que se entenda que a DADDH não é um tratado, ou que tenha força vinculante, isso não quer dizer que é um documento insignificante. Na verdade, a Declaração teve papel extremamente relevante para o avanço da proteção dos direitos humanos. A própria Corte IDH destaca que alguns tratados posteriores à DADDH fazem menção a ela em seus preâmbulos. Entendemos que isso demonstra que essa Declaração contribuiu para o avanço do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Como aponta Fabián Salvioli[9], apesar de não ser o único documento a fazer tal afirmação, a DADDH constitui relevante passo adiante para consagrar o conceito de universalismo dos direitos humanos, ao prescrever que os direitos humanos são inerentes a todas as pessoas, não importando a nacionalidade. Esse é um desdobramento relevante, pois, àquela época, alguns países ainda pensavam em adotar a teoria do relativismo cultural dos direitos humanos.

      Concluímos que, por mais que se entenda que a DADDH seja uma declaração que não estabelece obrigações internacionais ao Estado, trata-se de um documento que é um grande marco na defesa dos direitos humanos a nível regional, e que representa um grande avanço quando considerado o contexto no qual ela foi concebida.


[1] Pesquisador do NIDH – Núcleo Interamericano de Direitos Humanos. Mestre em direito internacional e Bacharel pela UERJ.

[2] Ressalta que é razoável entender que uma interpretação das disposições sobre direitos humanos contidas na Carta da OEA, tal como foi modificado no Protocolo de Buenos Aires, envolve, em princípio uma análise dos direitos da DADDH.

[3] A Corte faz referência a: Legal Consequences for States of the Continued Presence of South Africa in Namibia (South West Africa) notwithstanding Security Council Resolution 276 (1970), Advisory Opinion, I.C.J. Reports 1971, pág. 16 ad 31).

[4] A Corte faz referência a: Barcelona Traction, Light and Power Company, Limited, Second Phase, Judgment, I.C.J. Reports 1970, pág. 3.Na mesma linha: Legal Consequences for States of the Continued Presence of South Africa in Namibia (South West Africa) notwithstanding Security Council Resolution 276 (1970) supra nota 4, pág. 16 ad 57; cfr. United States Diplomatic and Consular Staff in Tehran, Judgment, I.C.J. Reports 1980, pág. 3 ad 42).

[5] Aprovado pela resolução AG/RES. 447 (IX-O/79), adotada pela Assembleia Geral da OEA, em seu Nono Período Ordinário de Sessões, realizado em La Paz, Bolívia, em outubro de 1979.

[6] LEGALE, Siddharta. A Corte Interamericana como Tribunal Constitucional. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado pela UERJ, 2017.

[7] Esses casos podem ser consultados no site da CIDH: http://www.oas.org/es/cidh/

[8] CIDH. Informe Anual 2016, Capítulo IVb – Cuba. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/docs/anual/2016/docs/InformeAnual2016cap4B.Cuba-es.pdf

[9] SALVIOLI, Fabián. El aporte de la Declaración Americana de 1948, para la Protección Internacional de los Derechos Humanos. In: El sistema interamericano de protección de los derechos humanos en el umbral del siglo XXI, Tomo I; San José, Costa Rica: Edit. Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2001. Disponível em: http://www.derechoshumanos.unlp.edu.ar/assets/files/documentos/el-aporte-de-la-declaracion-americana-de-1948-para-la-proteccion-internacional-de-los-derechos-humanos-fabian-salvioli.pdf

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