As Opiniões Consultivas OC-08/87 e OC-09/87 da Corte IDH: a suspensão de habeas corpus e de outras garantias judiciais em estados de emergência
Siddharta Legale[1]
Danilo Sardinha Marcolino[2]
Duas opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) envolvem questões centrais relacionadas a proteção de direitos humanos durante os estados de emergência.
A Opinião Consultiva nº 8 de 30 de janeiro de 1987(OC-08/87) versa especificamente sobre suspensão do habeas corpus.
A Opinião Consultiva 09 de 6 de outubro de 1987 (OC-09/87), por sua vez, é mais ampla por abordar os limites e possibilidades de suspensão as garantias judiciais como um todo durante os estados de emergência.
A Corte IDH, sob a presidência de Thomas Buergenthal, levou à público a OC-08/87, que fora solicitada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), questionando o posicionamento da Corte IDH sobre a suspensão da garantia judicial exercida por meio do habeas corpus em tempos de exceção, de emergência.
A CIDH, ao interpor o pedido de Opinião Consultiva à Corte IDH, formulou o seguinte o questionamento: se o habeas corpus, cujo fundamento jurídico se encontra nos artigos 7.6 e 25.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), seria uma das garantias judiciais que, de acordo com a parte final do parágrafo 2 do art. 27, não podem ser suspensas por um Estado-parte da CADH. Tal questionamento foi desenvolvido na solicitação do pedido em diversas argumentações da CIDH.
Em primeiro lugar, foi alegado pela CIDH que os Estados-parte da CADH mantinham o posicionamento de que, em situações de emergência, poderiam suspender a proteção judicial exercida mediante habeas corpus. Alguns dos Estados-parte, inclusive, possuiriam legislação especial para tais situações, mas que, muitas vezes, tais legislações violariam outros direitos protegidos pela CADH.
A CIDH alegou que, em alguns casos, Estados-parte possuíam uma legislação especial acerca do tema que permitia aos agentes públicos tornar incomunicável uma pessoa privada de liberdade por até quinze dias, ou seja, deixando-a incomunicável, sem contato nenhum com o mundo exterior.
A CIDH entendeu que é, precisamente nessas situações, que o habeas corpus adquire maior importância. Entretanto, admite que, desde já: casos de guerra, perigo público ou outra emergência que ameace a independência ou segurança do Estado, pode haver a discricionariedade do Estado em relação à privação da liberdade pessoal temporária de uma pessoa se esta for considerada um perigo para o Estado, respeitando o art. 27, CADH.
De mesmo modo, a CIDH considera que nem mesmo sob uma situação de emergência o habeas corpus pode ser suspenso ou ficar sem efeito. Afinal, a sua finalidade imediata é garantir que o detido não venha a sofrer violação a sua integridade pessoal (art. 5º).
Então, nesses casos de privação da liberdade pessoal temporária de uma pessoa considerada perigosa para o Estado, deve-se comprovar tal fato a partir de um critério de racionalidade na ordem de prisão.
Por fim, a CIDH alegou a atribuição de funções específicas do Judiciário ao Executivo conspira contra a separação de poderes, característica básica do Estado de Direito e de sistemas democráticos.
O Executivo poderia, de fato, nesses casos de situações de emergência, determinar se a pessoa representa ou não um perigo para o Estado e comprometer os seus direitos humanos ao decretar a sua prisão – função que seria, normalmente, do Judiciário.
A Corte IDH, ao tratar do mérito da questão, ressaltou a necessidade da interpretação dos arts. 27.2, 25.1 e 7.6 com base no disposto na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT), ou seja, deve haver uma interpretação de boa-fé.
Tal fato deve estar em harmonia com o art. 29, a, da CADH, o qual versa sobre as normas de interpretação, tendo em conta o objeto e finalidade do tratado – logo, nenhuma disposição da CADH poderia permitir a supressão do gozo e exercício das liberdades e direitos já garantidos.
Sobre o art. 27 da CADH em si, a Corte IDH destacou que não se trata de uma suspensão de garantias em sentido absoluto, nem de suspensão de direitos consubstanciais à pessoa. Ao contrário, o dispositivo parte de um preceito concebido somente para situações excepcionais, como casos de guerra, perigo público ou de outra emergência que ameace a independência e a segurança do Estado.
Logo, autoriza somente a suspensão de certos direitos e liberdades nessas situações de urgência, na medida e por tempo estritamente limitados pelas exigências da situação em específico.
Além disso, a suspensão adotada, entretanto, não poderá violar outras obrigações internacionais sob as quais o Estado-parte encontra-se submetido. Não pode, por ex., engendrar discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social[3].
Apesar de tudo, a Corte IDH entende que a suspensão, às vezes, pode ser o único meio de se atender a situações emergenciais. Contudo, a Corte IDH não pode abstrair-se aos abusos que podem vir a acontecer, muito em consideração à aplicação de medidas de exceção no hemisfério Sul, empregadas particularmente em contextos de ditaduras[4], sem estarem justificadas no art. 27 ou em princípios de outros instrumentos internacionais sobre o tema.
A Corte IDH, portanto, relaciona a vedação de suspender certas garantias e liberdades com a própria democracia, exigindo respeito à legalidade e as finalidades da CADH para operar restrições a direitos. Confira-se:
24. A suspensão de garantias constitui também uma situação excepcional, segundo a qual resulta lícito para o governo aplicar determinadas medidas restritivas aos direitos e liberdades que, em condições normais, estão proibidas ou submetidas a requisitos mais rigorosos. Isso não significa, sem embargo, que a suspensão de garantias comporte a suspensão temporal do Estado de Direito ou que autorize aos governantes a apartar sua conduta da legalidade a que em todo momento devem respeitar. Estando suspendidas as garantias, alguns dos limites legais da atuação do poder público podem ser distintos dos vigentes em condições normais, mas não devem considerar-se inexistentes nem cabe, em consequência, entender que o governo está investido de poderes absolutos além das condições em que tal legalidade excepcional está autorizada. Como já havia assinalado a Corte em outra oportunidade, o princípio da legalidade, as instituições democráticas e o Estado de Direito são inseparáveis (cf. A expressão “leis” no artigo 30 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Opinião Consultiva OC-6/86 de 9 de maio de 1986. Serie A No. 6, párr. 32)
Portanto, a suspensão de garantias não pode se desvincular do exercício efetivo da democracia representativa e do Estado de direito porque, como destacado acima, o governo não possui “poderes absolutos” além da “legalidade excepcional”.
Ainda sobre a suspensão de garantias, a CADH estabelece um princípio contrário aos critérios favoráveis à suspensão: diz que todos os direitos devem ser respeitados e garantidos a menos que circunstâncias muito especiais justifiquem a suspensão de alguns, ao ponto em que outros nunca podem ser suspendidos por mais grave que seja a situação emergencial.
A Corte IDH, ao tratar dessas “exigências da situação”, afirma que estas dependem do caráter, intensidade e profundidade, além do particular contexto da situação emergencial, assim como a proporcionalidade e razoabilidade que guardam as medidas adotadas a respeito dela.
O art. 27.2 da CADH dispõe sobre quais seriam as garantias indispensáveis, aquelas que não poderiam ser suspensas em nenhuma circunstância, pois são essenciais a proteção de certos direitos.
A Corte IDH lista, então, quais seriam estes direitos cujas garantias não poderiam ser suspensas, seriam estes: reconhecimento da personalidade jurídica (art. 3º), direito à vida (art. 4º), direito à integridade pessoal (art. 5º), proibição de escravidão e servidão (art. 6º), princípio da legalidade e da retroatividade (art. 9º); e também, proíbe a suspensão da liberdade de consciência e religião (art. 12), da proteção da família (art. 17), do direito ao nome (art. 18), do direito da criança (art. 19), do direito à nacionalidade (art. 20) e dos direitos políticos (art. 23).[5]
A partir das ponderações sobre o art. 27, a Corte IDH passou a analisar se as garantias contidas nos arts. 25.1 e 7.6, que não estão mencionadas no art. 27 da CADH, deveriam considerar-se como garantias judiciais indispensáveis.
O primeiro, art. 25.1, versa sobre o instituto processual do amparo (juicio de amparo[6]), onde toda pessoa tem direito a amparo jurídico contra atos praticados por autoridades em função oficial que violem os seus direitos fundamentais.
O art. 7.6, por sua vez, trata do instituto do habeas corpus, que abrange diretamente o direito à liberdade pessoal mediante privações arbitrárias. Partindo para uma observação mais conjunta, a Corte IDH identifica o amparo como uma norma geral, enquanto que o habeas corpus é um de seus aspectos específicos.
Logo após, a Corte IDH passa a ressaltar a necessidade da manutenção de tais garantias e afirma que são, sim, indispensáveis à proteção dos direitos já mencionados no art. 27.2 da CADH, voltando a citar o histórico de assassinatos, torturas e desaparecimentos por parte dos Estados na América Latina.
A Corte IDH concluiu, por unanimidade, que os procedimentos jurídicos consagrados nos arts. 25.1 (o amparo) e 7.6 (o habeas corpus) da CADH não podem ser suspendidos, já que, apesar de não terem sido citados no art. 27.2, protegem os mesmos direitos que tal artigo se propõe a proteger.
A vedação de suspender esses procedimentos opera-se, justamente porque, a despeito da não previsão explícita, tais institutos e dispositivos versam sobre garantias judiciais consideradas indispensáveis para proteger direitos e liberdades, as quais, também, em nenhuma hipótese, podem suspender-se, segundo a mesma disposição.
Além da OC-08, a Corte IDH concedeu a OC-09/87, solicitada pela Uruguai, durante a presidência de Rafael Nieto-Navia, questionando a relação entre direitos humanos, garantias judiciais e os estados de exceção ou de emergência.
Portanto, foi requerida a interpretação da relação entre os arts. 27.2, 25 (processo judicial) e 8º (garantias judiciais) da CADH, principalmente no que se refere à indispensabilidade de tais direitos reconhecidos no art. 27.2.
Sobre o art. 27.2 da CADH, a Corte IDH já havia definido, em termos gerais, quais seriam as garantias judiciais indispensáveis, “essenciais” à proteção dos direitos dispostos, como o Habeas Corpus, no artigo na OC-08/87.
O mesmo incide para as demais garantias judiciais dos arts. 8 e 25, visto que a Corte IDH já havia feito uma interpretação abrangente que inclui os institutos processuais, como o amparo, na proteção contra a suspensão de direitos fundamentais em estados de emergência. Portanto, uma violação a tais remédios constitui, em si, uma violação à própria CADH.
A Corte IDH prossegue afirmando que em casos de estado de emergência, não se pode haver a supressão ou ineficácia das garantias judiciais das quais o art. 27.2 trata, ou seja, daquelas que têm por objetivo proteger os direitos citados no dispositivo e na jurisprudência consultiva da Corte IDH. Logo, toda e qualquer supressão destas garantias judiciais é uma violação à CADH[7].
O art. 8º da CADH inclui o conceito de devido processo legal, que abarca os pré-requisitos necessários para assegurar a proteção das pessoas cujos direitos e obrigações estão pendentes por determinação judicial[8].
Logo, numa interpretação sistemática, conjunta aos arts. 7.6, 25 e 27.2, o princípio do devido processo legal não pode ser suspenso nem em estados de emergência, de modo que as medidas processuais necessárias para a sua proteção também não podem ser suspensas.
A OC-09/87, portanto, trata de diversos aspectos materiais do mesmo modo que a OC-08/87, divergindo da última mais pelo acréscimo da análise do mérito do art. 8º da CADH.
Como justificativa e argumentação de sua interpretação, muito do que foi dito na OC-09/87 foi citação ou referência à OC-08/87, o que resultou em um parecer bem similar das duas Opiniões Consultivas.
Por conta disso, a Corte IDH defendeu a posição de que as garantias judiciais “essenciais”, indispensáveis, as quais não são sujeitas à derrogação (art. 27), incluindo habeas corpus, amparo e outros remédios efetivos perante juízes e tribunais competentes, porque servem para garantir o respeito de direitos e liberdades cuja suspensão não está autorizada pela CADH.
[1] Professor Adjunto de Direito Constitucional da FND-UFRJ. Coordenador do NIDH. E-mail: [email protected]
[2] Pesquisador do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito (NIDH-FND). Acadêmico de Direito da FND-UFRJ, monitor de Direito Constitucional I (Teoria da Constituição). E-mail: [email protected]
[3] Cf. parágrafo 19, OC-08/87. Também, cf. art. 27.1, in fine, CADH.
[4] Referência ao longo período de ditaduras que predominou em vários países da América Latina, como Brasil, Argentina, Peru, Chile, etc.
[5] Cf. parágrafo 23, OC-08/87.
[6] Instituto processual presente em alguns países da América Latina, como Argentina e México.
[7] Cf. parágrafo 26, OC-09/87.
[8] Cf. parágrafo 28, OC-09/87.
as garantias essências Interpretação sistemático, ela analisa a norma em relação a outras normas presente no ordenamento jurídico. Não analisa a norma de forma isolada, devemos analisar suas características e especificidades. Devemos compará-las com as normas constitucionais que emanam toda sua carga valorativa para as demais normas; observando que caso a norma seja contrária com a constituição essa norma tem que ser expurgada do sistema. Princípio de supremacia da constituição que é o fundamento de validade das demais normas A Corte IDH afirma que em casos de estado de emergência, não se pode haver a supressão ou ineficácia das garantias judiciais das quais o trata, daquelas que têm por objetivo proteger os direitos citados na jurisprudência Logo, toda e qualquer supressão destas garantias judiciais é uma violação.
Desta forma a corte defendeu indispensáveis.
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