Ana Carolina de Azevedo Caminha1
Lara Campos de Paulo2
Raisa Duarte da Silva Ribeiro3
O caso Loayza Tamayo vs. Peru versa sobre a violação dos direitos de liberdade, integridade pessoal e das garantias e proteções judiciais da senhora María Elena Loyaza Tamayo, em decorrência de sua detenção arbitrária por parte do Estado do Peru, ocorrida no ano de 1993.
À época, o Estado peruano vivia uma crise constitucional em razão de um autogolpe. Em abril de 1992, o presidente Alberto Fujimori, com a proposta de um novo plano político de combate à corrupção generalizada, ao terrorismo da esquerda e ao narcotráfico, suspendeu a Constituição vigente e dissolveu o Congresso e a Suprema Corte, com pleno apoio dos militares. Como consequência, o grupo maoísta Sendero Luminoso iniciou um período de ataques terroristas, com intuito de conquistar domínio no território do Peru, estratégia que não obteve sucesso4.
A senhora Loayza Tamayo, peruana e professora universitária, foi presa por membros da Divisão Nacional contra o Terrorismo (DINCOTE) da Polícia Nacional do Peru, na cidade de Lima, Peru, em 06 de fevereiro de 1993, após ter sido denunciada por outra detida deste órgão, por meio da Lei de Arrependimento. O Estado peruano, destarte, sem observar os procedimentos legais de verificação, efetuou sua prisão sem que uma autoridade judicial competente tenha expedido tal ordem, enquadrando-a como colaboradora do grupo subversivo do Partido Comunista do Peru – Sendero Luminoso (PCP-SL).
Ela ficou detida junto a DINCOTE arbitrariamente pelo período de 20 dias, sem ter sido encaminhada à autoridade competente para julgar o Decreto-Lei n. 25.475 (delito de terrorismo). Nesse intervalo de tempo, permaneceu incomunicável durante 10 dias, quando foi alvo de torturas, tratos cruéis, degradantes e ilegais, como agressões e violências sexuais. Tais condutas foram realizadas com a finalidade de que ela se auto incriminasse e declarasse pertencer ao PCP-SL5.
Contudo, ela declarou ser inocente, negou a possibilidade de pertencimento ao PCP-SL e, ao contrário, expressou críticas às violências e violações de direitos humanos cometidas pelo grupo. Em seu tempo incomunicável, não lhe foi permitido contato com sua família e advogado, nem a possibilidade interpor nenhuma ação de garantia processual, pois o Decreto-Lei n. 25.659 (delito de traição à pátria) proibia a apresentação de recurso de habeas corpus em fatos relacionados ao terrorismo.
Por conseguinte, Loayza Tamayo foi apresentada à imprensa vestida com traje listrado, quando sofreu a imputação do delito de traição à pátria. Depois, foi levada ao antigo Hospital Veterinário do Exército, convertido em cadeia e, em seguida, transferida ao Centro Penitenciário de Segurança Máxima para Mulheres de Chorrillos.
Inicialmente, seu caso foi processado em diversas instâncias do foro privativo militar pelo delito de traição à pátria. Foi absolvida, posteriormente condenada e ulteriormente, absolvida novamente, ocasião em que o Tribunal competente ordenou a remessa do seu processo ao foro comum, a fim de analisar o delito de terrorismo.
Nesse sentido, na jurisdição ordinária, ela foi processada pelo delito de terrorismo e, mais uma vez, em várias instâncias. No início do processo, a denunciada suscitou exceção de coisa julgada, de acordo com o princípio non bis in idem, que foi indeferida pelo “Tribunal Especial sem rosto do Foro Comum”6, com fundamento nos mesmos fatos e acusações reunidas no foro militar, o que culminou em sua condenação a 20 anos de pena privativa de liberdade.
Cabe ressaltar que contra esta última sentença condenatória, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) interpôs recurso de nulidade, que foi declarado incabível. Impende ressaltar, nesse sentido, que durante os trâmites processuais tanto no foro militar como no foro ordinário, a senhora Loayza Tamayo permaneceu encarcerada.
A CIDH recebeu a denúncia do caso pelos familiares e advogados da reclamante em 06 de maio de 1993, pelas diversas violações de direitos humanos que esta sofria, ao qual transmitiu ao Estado peruano, que respondeu com a documentação das informações relativas a situação da detida. O acompanhamento do caso foi realizado pela CIDH, que em 16 de setembro de 1994 realizou uma audiência pública em sua sede.
Após isso, em 26 de setembro do mesmo ano, a CIDH aprovou o Relatório n. 20/94, cuja parte final sustentou a violação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) e emitiu algumas recomendações ao Estado peruano. Em sua resposta, o Estado concluiu que não era possível aceitar as recomendações da CIDH, pelo não esgotamento da jurisdição interna no procedimento judicial de terrorismo.
Em razão do não cumprimento das suas recomendações, em 12 de janeiro de 1995, a CIDH submeteu o caso perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), originando a Denúncia n. 11.154. Em sua demanda, a CIDH solicitou que a Corte IDH decidisse se houve violação dos artigos da CADH: 7º (Direito à Liberdade Pessoal), 5º (Direito à Integridade Pessoal), 8º (Garantias Judiciais) e 25 (Proteção Judicial) com relação ao artigo 1º(1) da mesma Convenção e do artigo 51.2 da Convenção, pela negação ao cumprimento das recomendações.
No decorrer do processamento do caso na Corte IDH, a senhora Loayza Tamayo foi transferida de pavilhão no Centro Penitenciário. Ela foi retirada do pavilhão “A”, divisão das internas classificadas como de mínima periculosidade e colocada no pavilhão “C”, divisão de máxima periculosidade, com isolamento celular contínuo, o que constituiu em agravamento arbitrário e ilegal de suas condições de detenção, situação que viola a CADH e as Regras Mínimas de Tratamento dos Reclusos.
A CIDH apresentou uma solicitação de medidas provisórias a favor de Loayza Tamayo, na qual pediu à Corte IDH que ordenasse ao Estado que deixasse sem efeito sua nova situação de detenção. Assim, a Corte IDH solicitou ao Peru que adotasse, sem demora, medidas para assegurar a integridade física, psíquica e moral da detida.
As condições de detenção da senhora Loayza Tamayo foram discutidas por um longo período entre a CIDH e o Estado peruano. Enquanto a primeira afirmava um regime de isolamento celular e incomunicabilidade, assim como a deterioração da sua saúde, o segundo alegava que ela não se encontrava em isolamento celular e que estava em perfeitas condições físicas e mentais, com estado de saúde estável.
Quanto ao processamento do caso, no documento inicial da demanda e nos sucessivos apresentados à Corte IDH, a CIDH apresentou seus argumentos que alegavam que a senhora María Elena Loayza Tamayo teria sofrido violações por parte do Estado do Peru no que se refere à observância do direito ao devido processo legal, que tramitou de forma irregular e sem das devidas garantias judiciais em ambos os foros.
Também afirmou que foram violados os direitos à igualdade, à presunção de inocência e o princípio do non bis in idem e, ainda, atribuíram-lhe como existentes certos fatos que não foram provados no foro militar e que, mesmo assim, estes seguiram para o foro comum no julgamento do delito de terrorismo sem a devida comprovação.
A CIDH também afirmou que o delito de traição à pátria impedia a senhora Loyaza Tamayo de acessar qualquer recurso de amparo ou habeas corpus no momento da detenção, e que a justiça militar, ao contrário das alegações do Estado, exerceu plena jurisdição ao analisar e decidir o caso, que teve como resultado três absolvições e uma condenação, entre outras sustentações.
Na contestação da demanda e em suas alegações finais, o Peru expôs em seus argumentos que, tanto à CIDH como à Corte IDH foram atribuídas jurisdição de forma indevida pelo não esgotamento dos recursos internos. Defendeu também que o devido processo legal não foi cumprido pela CIDH, que apenas revelou a admissibilidade da denúncia em audiência, quando deveria ter feito a comunicação no seu recebimento.
Alegou ainda, que a detida ficou incomunicável na forma da lei interna do Estado e restou encarcerada durante o processamento nos dois foros justificadamente, bem como negou que a detida sofreu maus tratos, agressões ou violência sexual pela DINCOTE.
Informou que a competência para conhecer e julgar o delito de traição à pátria corresponde à justiça militar e o delito de terrorismo corresponde aos juízes e tribunais do foro comum. Tentou esclarecer que não houve duplo julgamento do mesmo caso, já que o foro militar entendeu que o delito praticado por Loayza Tamayo era o de terrorismo, razão pela qual declinou o processo à competência da justiça comum7.
No mesmo sentido, disse que o advogado da defesa tinha pleno conhecimento do processo e não foi impedido de exercer seus direitos postulatórios e que quando Loyaza Tamayo foi detida, o Departamento de Lima e a Província Constitucional de Callao tinham sido declarados em estado de urgência, ocasião em que ficaram suspensas algumas garantias constitucionais, entre outras sustentações.
A Corte IDH, portanto, analisando todos os fatos e fundamentos apresentados, considerou demonstrados, entre outros, os fatos principais que anunciaram a detenção da senhora Loayza Tamayo, o estado de emergência local na época e de suspensão de garantias constitucionais, também reconheceu o período em que ela permaneceu incomunicável na DINCOTE, sem a observância das garantias processuais.
Considerou que a detida foi exibida publicamente nos meios de comunicação como terrorista, mesmo sem ter sido processada nem condenada; que ela não teve oportunidade de ter contato com a família no tempo incomunicável na DINCOTE e que, nesse período, foi examinada por um médico, que constatou suas equimoses.
Declarou que a senhora Loayza Tamayo foi processada no foro militar pelo delito de traição à pátria e, posteriormente, no foro ordinário pelo delito de terrorismo. A Corte IDH também reputou as dificuldades que se apresentaram a ela para constituição de advogado e o impedimento do acesso deste ao expediente processual e ao direito de exercer defesa de forma ampla em ambas as jurisdições.
Analisou que a detida ficou privada de sua liberdade de forma ininterrupta desde sua prisão até o julgamento pela Corte IDH, que permanecia encarcerada em condições precárias, com isolamento celular contínuo e que, durante a época da detenção da mesma, existiu no Peru uma prática generalizada de tratos cruéis, desumanos e degradantes, por motivos das investigações criminais por delitos de traição à pátria e terrorismo.
Ao examinar as alegações e provas apresentadas pelas partes, a Corte IDH considerou que o Estado do Peru violou o direito à liberdade pessoal da senhora Loayza Tamayo por não lhe permitir o direito de interpor nenhuma ação de garantia para salvaguardar sua liberdade pessoal ou questionar a legalidade de sua detenção, independente da existência ou não do estado de suspensão de garantias e com maior razão, considerou que a detenção da mesma foi ilegal8.
Violou também o seu direito à integridade pessoal, na medida em que foi considerado todo o conjunto de situações por ela vividos, como incomunicação, exibição pública com traje infamante, isolamento celular e que, apesar das alegações de violência contra ela durante sua detenção na DINCOTE não ficarem efetivamente comprovadas, os outros fatos alegados permitem validamente a presunção da prática de tratos cruéis, desumanos e degradantes provocados contra a mesma9.
Além disso, violou as garantias judiciais, pois a senhora Loayza Tamayo, na jurisdição militar, não foi julgada por juiz competente e, não teve direito ao princípio da presunção de inocência10. Houve também violação de suas garantias judiciais quando o Estado não lhe reservou o direito ao princípio do non bis in idem, de modo que foi julgada na jurisdição ordinária pelos mesmos fatos que tinha sido absolvida na jurisdição militar11.
Por fim, ordenou que a senhora María Elena Loayza Tamayo deveria ser colocada em liberdade pelo Estado do Peru, em prazo razoável e que este deveria pagar obrigatoriamente uma indenização a ela e aos seus familiares, além de ressarci-los nas despesas processuais.
Em cumprimento à sentença, o Estado do Peru colocou a senhora Loayza Tamayo em liberdade e, de acordo as supervisões de cumprimento de sentença da Corte IDH, deve continuar adotando medidas necessárias para o cumprimento de todas as ordens e determinações expedidas por esta jurisdição internacional.
1 Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Universidade Candido Mendes. Bacharel em Direito pela Universidade Veiga de Almeida. Advogada (OAB/RJ). Pesquisadora do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2 Graduanda em Direito pela UVA; Monitora de Direitos Fundamentais; Discente em Programa de Iniciação Científica e aluna do NIDH-FND.Pesquisadora do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
3 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense; pós-graduada em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Professora de Direito Constitucional e Direitos Humanos da Universidade Veiga de Almeida e do Centro Universitário Carioca. Pesquisadora do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
4 FUJIMORI dá autogolpe no Peru, em 1992, fecha o Congresso e a Suprema Corte. Acervo O Globo, 28 de set. 2013. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/fujimori-da-autogolpe-no-peru-em-1992-fecha-congresso-a-suprema-corte-9235294. Acesso em 19 de nov. 2018.
5 A Senhora Loayza Tamayo era acusada pelo delito de traição à pátria por pertencer e ter efetuado ações a favor da organização terrorista PCP-SL, com grupo dedicado a realizar “aniquilamento” de diversas pessoas, por ter demonstrado que tem preparação ideológica e importância dentro dessa organização terrorista e que chegou a abrigar clandestinamente integrantes do grupo em seu imóvel.
6 A Senhora Loayza Tamayo foi julgada por “juízes sem rosto” tanto no foro privativo militar, como no foro comum, que correspondiam a julgadores “carentes de (…) independência e imparcialidade”, conforme parágrafo 37.a., da sentença.
7 O Supremo Tribunal Militar Especial determinou a absolvição da Senhora Loayza Tamayo porque se declarou impedido de analisar os atos imputados à ela, que não constituíam delito de traição à pátria, mas delito de terrorismo, e que o termo “absolvição” corresponde a uma fórmula processual que a Justiça Militar emprega quando o crime cometido não é de sua competência.
8 Artigo 7º da CADH, combinado com artigo 25 e 1º(1) da mesma.
9 Artigo 5º da CADH, combinado com o artigo 1º(1) da mesma.
10 Artigos 8º(1) e 8º(2) da CADH, combinados com artigos 25 e 1º(1) da mesma.
11 Artigo 8º(4) da CADH, combinado com artigo 1º(1) da mesma.
O caso da senhora Loayza Tamayo é muito parecido com outros inúmeros casos que aconteceram no Brasil durante o período chamado de “Ditadura Militar”.
Onde, sem embasamento e investigações, cidadãos eram detidos e torturados, para que através desse, os militares conseguissem alguma autoincriminação.
No Brasil, a ditadura foi introduzida através de um golpe de Estado, onde os governantes alegaram estar fazendo isso graças à uma ameaça comunista que se instaurava.
No Peru, a violação dos diretos da senhora Loayza Tamayo violou muitos dos direitos fundamentais inerentes à vida e à dignidade da pessoa humana.