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CASO MASSACRE PLAN DE SÁNCHEZ VS GUATEMALA (1982): VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLÊNCIA RACIAL CONTRA POVOS INDÍGENAS

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Elaine Gomes dos Santos[1]

Camilla Calleia Carneiro Vaz[2]

Raisa Duarte da Silva Ribeiro[3]

 

     O caso Massacre Plan de Sánchez versa sobre o massacre de 268 pessoas, que em maioria eram membros da comunidade indígena maia, na aldeia Plan de Sánchez, no Município de Rabinal, na Guatemala. O massacre ocorreu em 18 julho de 1982 por integrantes do exército do país e colaboradores civis.

     Na época, a Guatemala estava sob a égide de uma ditadura militar, em razão do golpe de Estado perpetrado pelo general José Efraín Ríos Montt. Esse regime de exceção durou 18 meses, e foi durante essa fase que o exército guatemalteco praticou a maioria dos massacres contra os povos indígenas de origem maia. Saliente-se que o governo de Ríos Montt estava inserido no contexto de uma guerra civil que durou, aproximadamente, 36 anos, de 1960 a 1996.

     O massacre demonstrou, dessa forma, a orientação da política genocida do Estado guatemalteco realizada com a intenção de destruir ou reduzir drasticamente o povo indígena maia, além de evidenciar uma flagrante situação de violação de direitos humanos, violência contra a mulher, racismo e preconceito cultural. O massacre foi considerado uma política sistêmica praticada pelo Estado, por meio do seu exército, para suprimir e silenciar a voz dessa comunidade.

     Nesse caso, os sobreviventes foram impedidos de provocar a jurisdição interna do país por vários anos, porque após o massacre foram ameaçados por soldados e membros do exército guatemalteco, sendo assim, tiveram que se exilar em outra região durante muitos anos.

     Apenas em 1993, os sobreviventes puderam denunciar formalmente os assassinatos.  Entretanto, encontraram diversos obstáculos impostos pelas autoridades responsáveis pelo caso como, por exemplo, o largo decurso de tempo para exumar os corpos dos mortos no massacre. A primeira exumação demorou mais de 1 ano e a segunda mais de dois anos após as denúncias para serem realizadas.

     Além disso, essa comunidade rural sofreu antes, durante e depois do massacre processos de intimidação perpetrados pelos agentes do governo, fragilizando e vulnerabilizando esse povo. As investigações do massacre também esbarraram na Lei de Reconciliação Nacional[4], que impediu que o ajuizamento de demandas em face dos responsáveis pelos assassinatos.

     Dessa forma, não foi possível esgotar todos os recursos internos, em razão da intimidação e das ameaças exercidas sobre os remanescentes do massacre e dos obstáculos impostos à persecução penal e a leniência das autoridades na apuração da responsabilidade dos agentes que cometerem os atos ilícitos.

     Considerando a incapacidade do Estado guatemalteco em empreender uma persecução penal adequada das mortes violentas e das violações sexuais cometidas pelos seus agentes, o Centro para la Acción Legal en Derechos Humanos, na posição de representante das vítimas, apresentou uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em outubro de 1996, em inglês, e em fevereiro de 1997, em espanhol.

     A CIDH constatou, nesse momento inicial, que houve, por parte do Estado da Guatemala, o descumprimento das obrigações previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), quais sejam 5, 8, 12,19, 21, 24, e 25, em seu Informe nº 31/99, transmitido as partes em 19 de março de 1999[5].

     Em 9 de agosto de 2000, o Presidente da Guatemala, sob a resolução amigável de vários casos que estavam pendentes perante a CIDH, dentre eles, reconheceu a “responsabilidade institucional” do Estado no caso do Massacre Plan de Sánchez.

     Após analisar a posição das partes em relação ao Informe, a CIDH aprovou o Relatório Fundamental nº 25/02, que foi transmitido ao referido Estado em maio de 2002. Nesse relatório, a CIDH recomendava ao Estado:

“1. Realizar uma investigação especial, rigorosa, imparcial e eficaz para julgar e punir os líderes materiais e intelectuais do massacre de Plan de Sánchez. 2. Reparar o escopo individual e comunitário das consequências da violação dos direitos listados. Como medidas de reparação, a identificação de todas as vítimas do massacre de Plan de Sánchez deve ser incluída, bem como uma compensação adequada aos seus familiares e sobreviventes do mesmo. 3. Adotar as medidas necessárias para evitar a ocorrência de eventos semelhantes no futuro, de acordo com o dever de prevenção e garantia dos direitos fundamentais reconhecidos na Convenção Americana” (tradução nossa)[6]

     Na segunda metade de 2002, depois de avaliar os relatórios sobre o cumprimento das obrigações apresentadas pelo Estado e a manifestação apresentada pelos peticionários, a CIDH submeteu o caso perante a Corte Interamericana (Corte IDH), por considerar que o Estado não cumpriu integralmente as recomendações que haviam sido feitas.

     A CIDH, em sua demanda apresentada à Corte IDH, afirmou que o Estado não realizou uma investigação séria e eficaz para averiguar os fatos e punir os autores; ao contrário, os familiares e sobreviventes continuaram a sofrer intimidações e ameaças, o que prolongava o sofrimento e o medo dos peticionários. Ademais, a CIDH considerou que o Estado guatemalteco não estabeleceu qualquer medida para reparar as consequências do ato criminoso e para a compensação dos danos sofridos pelos sobreviventes.

     Segundo a CIDH, o massacre ocorreu “no contexto de uma política genocida Estado guatemalteco realizado com a intenção de destruir, no todo ou em parte, os povos maias indígenas”[7].

     No decorrer do processo foram analisadas as provas documentais, testemunhais e periciais que foram apresentadas e requeridas pelas partes. Nesse sentido, as Corte examinou diversas provas testemunhais, que consistiam em declarações de testemunhas perante ao notário público que não puderam ser repetidas nas audiências públicas realizadas por este órgão. Nessas declarações, as testemunhas relataram os fatos ocorridos no dia do massacre e quais foram as consequências na vida dos sobreviventes. Foram analisadas também as declarações de especialistas de diversos ramos das ciências sociais e humanas que emitiram pareceres sobre os fatos ocorridos na aldeia de Plan de Sánchez.

     Em audiência pública realizada perante à Corte IDH em 23 de abril de 2004, da qual participaram a CIDH, os representantes das vítimas e seus familiares, o Estado da Guatemala, testemunhas e peritos propostos pela CIDH, o Estado guatemalteco se manifestou por escrito retirando as exceções preliminares interpostas e reconhecendo a sua responsabilidade internacional no caso.

     Na audiência pública realizada em 19 de janeiro de 2004, perante à Corte IDH, foram ouvidas testemunhas e peritos convocados. As testemunhas relataram os fatos ocorridos no dia do massacre e nos anos posteriores, em que narraram as dificuldades no acesso ao Poder Judiciário. Nos seus relatos, expuseram o sofrimento, a dor e os horrores que vivenciaram naquele dia e nos anos posteriores ao massacre. Os peritos analisaram os danos emocionais e culturais ocasionados pelo ato genocida praticado pelo Estado, atestaram, em seus pareceres, que os atos praticados no dia 18 julho de 1982 trouxeram danos irreparáveis a cultura desse povo indígena e a saúde mental dos sobreviventes.

     Após o exame e a valoração do acervo probatório, a Corte proferiu duas sentenças, uma decisão de fundo e outra destinada a delimitar as reparações devidas aos sobreviventes.

     Na sentença de fundo foi retirada as exceções preliminares e reconheceu-se a responsabilidade internacional do Estado. Além disso, nessa decisão, a Corte IDH reconheceu a responsabilidade do Estado pela violação dos artigos 5.1 e 5.2 (direito à integridade pessoal); 8.1 (garantias judiciais); 11 (proteção da honra e dignidade); 12.2 e 12.3 (liberdade de consciência e religião); 13.2, a, e 13.5 (liberdade de pensamento e expressão); 16.1 (liberdade de associação); 21.1 e 21.2 (direito à propriedade privada); 24 (igualdade perante a lei) e 25 (proteção judicial) da CADH. No entanto, não foi mencionada a responsabilidade individual dos agentes perpetradores do genocídio, posto que a Corte se limitou a identificar as violações cometidas à Convenção pelo Estado.

     Posteriormente, proferiu-se uma segunda decisão na qual o Estado determinou a reparação dos danos materiais e imateriais sofridos pelos sobreviventes e aqueles que foram diretamente afetados pelo massacre.

     A Corte IDH reconheceu, ainda, que a violação sexual das mulheres foi uma prática do Estado, inserida no padrão de violência contra a mulher com o intuito de destruir a dignidade desta à nível cultural, familiar, social e individual. Ademais, foi reconhecido a situação de vulnerabilidade acentuada das mulheres indígenas quanto à proteção de seus direitos.

     Outros pontos relevantes reconhecidos pela Corte IDH foram o prejuízo cultural provocado pelo massacre, uma vez que com a morte de mulheres e anciãos, que são transmissores orais da cultura maia, caracterizando violação à identidade e cultura maias.

     Ainda, a Corte IDH reconheceu que as vítimas sofreram danos materiais e imateriais, em razão da eliminação cultural e submissão cultural imposta aos sobreviventes. As vítimas, por exemplo, não puderam realizar suas cerimônias e rituais específicos para homenagear seus mortos, provocando, assim, graves sofrimentos aos familiares. Além do mais, as mulheres foram vítimas de violência sexual por parte dos agentes do Estado, no dia do massacre, e as que sobreviveram continuam a padecer do sofrimento imposto por esta agressão. As mulheres violentadas sofrem de estigmatização nas suas comunidades e a impunidade desses agentes impõem sofrimento e dor a estas mulheres que estão alijadas de participar dos processos de justiça.

     Entre outras medidas de reparação estabelecidas pela Corte IDH, podemos ressaltar: a condução eficaz do processo penal em curso, para identificar e punir os responsáveis pelo massacre; as indenizações pelos danos materiais e imateriais causados às vítimas e seus familiares; a realização de ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional sobre os fatos, em desagravo as vítimas e a memória das pessoas executadas; determinação de criação de uma política habitacional para os sobreviventes que foram alijados de suas casas em razão do massacre; a concessão de tratamento médico e psicológico aos sobreviventes.

     Em relação aos danos materiais, a Corte IDH fixou o montante de US$ 5.000,00 (cinco mil dólares) a ser pago as vítimas sobreviventes do massacre ou aos seus herdeiros. Quanto aos danos morais, o órgão determinou que fossem pagos aos sobreviventes ou aos seus herdeiros o valor de US$ 20.000,00 (vinte mil dólares).

     Em supervisão do cumprimento da sentença, a Corte IDH emitiu resoluções, declarando cumprida a realização de ato público de reconhecimento da responsabilidade por parte do Estado. Além disso, declarou que foram cumpridas parcialmente os seguintes pontos: o desenvolvimento da comunidade Plan de Sánchez e o pagamento das indenizações estabelecidas na sentença. Segundo as resoluções de cumprimento da Corte IDH estavam pendentes de cumprimento tais pontos: a investigação do massacre, com respectivo julgamento e condenação dos responsáveis pelo genocídio; a concessão de tratamento médico e psicológico dos sobreviventes; e a construção de moradias para os sobreviventes[8].

     No que tange ao pagamento das indenizações por danos materiais e morais, verificou-se o pagamento parcial da maior parte das vítimas indicadas na decisão, na proporção de 66.6% do valor individual fixado na sentença, no entanto, em relação a algumas vítimas houve problemas de identificação e de reconhecimento dos beneficiários diretos, que obstaram o pagamento das referidas indenizações[9].

     O massacre dos membros da comunidade indígena Plan Sánchez se insere na lógica genocida do Estado da Guatemala, que tinha o intuito de destruir os povos indígenas de origem maia, bem como promover o aniquilamento cultural e da dignidade desse povo. A violência contra a mulher está, também, nesse padrão de comportamento de silenciar e subjugar as mulheres tanto a nível cultural, moral, social, familiar e individual, já que a prática de violações sexuais estigmatizou as vítimas sobreviventes dentro de suas comunidades, ferindo sua identidade enquanto pertencente a uma comunidade, o que continua a gerar sofrimentos e graves temores mesmo após o massacre.

[1] Graduada em História pela UERJ e em Direito pela UVA. Pós-graduada em Relações Internacionais pela PUC-RJ. Colaboradora no PIC-UVA.

[2] Acadêmica em Direito pela UVA. Integrante do Projeto de Iniciação Científica da UVA.

[3] Mestre em Direito Constitucional pela UFF, pós-graduada em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, em Portugal. Professora de Direito da UVA e da Unicarioca. Pesquisadora do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da FND-UFRJ.

[4] A Lei de Reconciliação Nacional estabelece que a extinção da responsabilidade criminal pode ser aplicada aos seguintes delitos: crimes políticos contra a segurança do Estado, a ordem institucional e a administração pública; crimes comuns ligados a crimes políticos; e crimes comuns perpetrados com o objetivo de prevenir ou realizar crimes políticos e conexos. A Lei estabelece que a anistia não será aplicada aos crimes de genocídio, tortura, desaparecimentos forçados e àqueles para os quais não haja prescrição ou que não permitam a extinção da responsabilidade criminal, de acordo com a legislação nacional ou tratados internacionais ratificados pela Guatemala.

[5] Foi alegada a violação dos seguintes direitos previstos na CADH: direito à vida, direito a garantias judiciais, direito à liberdade de consciência e de religião, direito à propriedade privada, direito à igualdade perante a lei e direito à proteção judicial.

[6] Corte IDH. Caso Massacre Plan de Sánchez Vs. Guatemala. Sentença de 29 de abril de 2004.

[7] CIDH. Caso Massacre Plan de Sánchez Vs. Guatemala. Informe nº 31/99.

[8] Informações provenientes de Resoluções exaradas pela Corte IDH, durante os anos de 2007,2008, 2011, 2015 e 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/cf/jurisprudencia2/casos_en_etapa_de_supervision.cfm?lang=en

[9] Informações provenientes de Resoluções exaradas pela Corte IDH, durante os anos de 2007,2008, 2011, 2015 e 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/cf/jurisprudencia2/casos_en_etapa_de_supervision.cfm?lang=en

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