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Myrna Mack Chang vs Guatelama (2003) e o Controle de Convencionalidade: “dando nome aos bois”

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Siddharta Legale[1]
Ângela Vitória Andrade Gonçalves da Silva[2]
Lucas Tavares Pereira Pêgas[3]

 

     Nos livros de direito internacional, o caso Myrna Mack Chang vs Guatemala (2003) da Corte IDH tornou famoso pelo conhecido voto concorrente do magistrado Sérgio Garcia Ramirez no qual aparece pela primeira vez em um documento da referida Corte o termo “controle de convencionalidade”[4]. A questão que fica é se o precedente representa efetivamente o “pai fundador” do controle de convencionalidade na Corte Interamericana de Direitos Humanos ou se ele simplesmente deu “nome aos bois”? Pelo título, já se percebe uma pista em relação à resposta.

     O caso resultou do assassinato de Myrna Mack Chang, que aconteceu na Guatemala no dia 11 de setembro de 1990 em um contexto político de grande instabilidade e insegurança devido à guerra civil que se alastrava. O cerceamento do direito à vida da antropóloga ocorreu em decorrência de um plano da inteligência militar guatemalteca, destinado a eliminar “inimigos” do Estado, a mando do Estado Mayor Presidencial, um órgão militar. Com o assassinato, os familiares e amigos da vítima buscaram respaldo judicial no aparato estatal para obterem acesso à justiça que, contudo, fora sujeito à uma série de obstruções que fizeram prevalecer a impunidade. Além da situação, por si só, ser demasiada grave, o caso contou com diversas represálias por parte dos agentes estatais aos familiares, amigos e as demais pessoas que estavam encaminhando o caso da vítima, com ameaças e perseguições.

     Frente a esse cenário, no dia 12 de setembro de 1990 a Comissão Guatemalteca de Direitos Humanos apresentou uma denúncia ante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), aprovada em março de 1996. O reconhecimento da responsabilidade internacional do Estado foi realizado no dia 3 de março de 2000 e logrou em um acordo para impulsionar o processo penal e “retirar o véu da impunidade” que estava impedia a resolução do caso. No entanto, mesmo um ano após o reconhecimento da responsabilidade estatal, não houve nenhuma atitude do por parte do Estado para mudar o quadro da situação e amparar as vítimas, fazendo com que, no dia 14 de junho de 2001, a CIDH submetesse o caso à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). A Guatemala é parte da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) desde 1978, tendo reconhecido a competência contenciosa da Corte IDH em março de 1987, de modo que deve se sujeitar a sua jurisdição.

     O assassinato da antropóloga ocorreu, conforme a conclusão do informe construído por Escobar e Ixcajop (investigadores da Polícia Nacional), por razões políticas. Como objeto de seus estudos, Myrna Mack Chang passou analisar o fenômeno dos deslocados internos e as Comunidades de População de Resistência e suas condições de vida, assunto completamente sensível durante o período da guerra civil. Chang concluiu que a causa principal do fenômeno se dava em razão da atuação do Exército guatemalteco com seu programa de contra insurgência. Devido ao desconforto gerado por suas investigações, passou a ser vigiada e no dia 11 de setembro foi executava com 27 punhaladas, por ao menos uma pessoa.

     É importante ressaltar que no período em questão havia uma onda de assassinatos selecionados, ministrados pelas operações da inteligência militar e documentados no “Diário Militar”; diário este que fora descoberto a partir da análise dos documentos estadunidenses de segurança nacional sobre a Guatemala. O caso é mais um exemplo típico de perseguição e assassinato à ativistas de Direitos Humanos por membros do próprio aparato estatal, situação que não se limita às fronteiras guatemaltecas. No que diz respeito ao Brasil, por exemplo, chegou à jurisdição da Corte IDH o Caso Gilson Nogueira de Carvalho (2006)[5], advogado e ativista de direitos humanos, assassinado no dia 20 de outubro de 1996. Neste julgado, mesmo não tendo sido reconhecida a violação dos direitos da vítima por parte do Estado, a Corte IDH frisou a importância do apoio à tarefa dos defensores de direitos humanos, tanto no plano interno quando no internacional, tendo em vista a contribuição dessas pessoas na promoção e proteção destes direitos.

     A gravidade dos fatos tornou-se evidente a partir do recolhimento de provas, na audiência pública realizada pela Corte, em fevereiro de 2003. Nesta situação, ficou comprovado o assassinato de um dos policiais que levava a cabo a investigação, José Mérida Escobar, e o exilio de seu parceiro ao Canadá, por terem apresentado um informe (que mais tarde fora alterado) que concluía que os motivos que levaram o assassinato da antropóloga eram exclusivamente políticos e Jesús Beteta Álvarez, integrante do “Archivo”, seria o principal suspeito. O advogado que assistia Helen Mack Chang foi alvo de várias ameaças, com mensagens de morte e com disparos em sua casa. O segundo juiz da primeira instância penal da Cidade de Guatemala que deu abertura ao processo penal para responsabilizar três membros do exército, acusados de apresentar responsabilidade intelectual e material do caso (Godoy Gaitán, Juan Valencia Osorio e Juan Guilhermo Oliva Carrera), foi objeto de ameaças e intimidações de vários tipos, fazendo-o renunciar a magistratura e exilar-se no Canadá. Ademais, os integrantes da fundação Mack Chang, da Associação para o Avanço das Ciências Sociais na Guatemala (AVANCSO) e os familiares da vítima passaram a viver em uma situação de insegurança constante, onde não podiam mais buscar amparo no Estado.

     Na audiência celebrada pela CIDH, em março de 2000, o Estado, através do Ministro das Relações Exteriores, reconheceu a sua responsabilidade frente ao caso e se comprometeu com a continuidade e a efetivação do processo penal na jurisdição interna. A Comissão concluiu, assim, que este reconhecimento teria valor jurídico, obrigando o Estado a reparar as violações cometidas. Para o Estado, no entanto, havia sido exercido apenas um reconhecimento parcial dos feitos, alegando que as obstruções, as intimidações e a negligência do judiciário, seriam fatores que escapavam o controle estatal e uma interferência violaria a independência entre os poderes, princípio protegido por sua Constituição Política.

     Os atos ilícitos do caso atingiram uma proporção tão grande que foi necessário a solicitação de medidas provisionais que se estenderam por todo o processo, sendo estas equiparáveis às medidas cautelares de urgência requeridas para impedir a ocorrência de danos irreparáveis. A primeira foi solicitada no dia 9 de agosto de 2002, para proteger Helen Mack Chang, Viviana Salvatierra, América Morales Ruiz, Luis Romero Rivera e os integrantes da fundação Mack Chang. Mais tarde, essas medidas cautelares foram sendo estendidas as demais vítimas do caso, ou seja, aquelas que de alguma forma sofreram um dano, material ou imaterial, de forma direta ou indireta. A última medida, por sua vez, foi emitida pela Corte IDH no dia 26 de janeiro de 2015 estendendo o período e as necessidades de medidas para proteção da vida e da integridade física das vítimas.

      Mesmo após o reconhecimento da responsabilidade estatal, prevaleceram inúmeros empecilhos que impediram a efetivação da justiça e é diante desse cenário de obstruções que se debruçou a sentença da Corte e também a presente análise. Assim, passamos a averiguar importantes colaborações da jurisprudência em questão para o entendimento acerca: (i) da ampliação da noção de vítima e o avanço do locus standi do indivíduo ante o tribunal regional;(ii) do marco na história do controle de convencionalidade; (iii) da complementariedade entre responsabilidade internacional e responsabilidade penal individual; (iv) e da responsabilidade agravada e a invocação abusiva do chamado Segredo de Estado.

     Sobre o alcance e os efeitos das violações ficou determinado no presente julgado uma ampliação da noção de vítima, reforçando o entendimento do Tribunal acerca do assunto, que abarcou tanto as vítimas diretas, quanto as indiretas. Como resultado desse fato, o caso passou a ter grande valor simbólico à medida que em estendeu o âmbito de tutela aos atingidos e representou um grande avanço no Direito Internacional de Direitos Humanos (DIDH), assegurado pela efetivação do art. 23 do Regulamento da Corte IDH de 1996, o locus standi dos indivíduos não só na etapa de reparações, mas também na construção do mérito da causa[6]. O Juiz Cançado Trindade em seu voto tratou desse progresso como sendo uma extensão da personalidade e capacidade jurídica e processual do indivíduo ante a Corte vislumbrado com familiares imediatos que um papel emblemático no decorrer do caso à medida que passaram a ser protagonistas do processo.

     Quanto desenvolvimento do controle de convencionalidade, trata-se da primeira aparição dentro da jurisprudência da Corte IDH, através do voto de García Ramirez. O mote para a invocação do controle de convencionalidade no caso se deu pelo fato do Estado ter se escusado, em prol da “independência dos poderes”, de realizar as reparações às vítimas no que tange ao fim dos obstáculos no processo e a negligência dos órgãos judiciários. Para o Juiz quando um Estado assume uma obrigação frente ao cenário internacional, como a obrigação convencional, todos seus órgãos passam a estar vinculados a ela. Dessa forma, quando as leis e atos normativos internos aplicados não são compatíveis com a CADH, ou seja, não passam pelo controle de convencionalidade, a responsabilidade deve ser assumida pelo Estado como um todo, frente à obrigação assumida no plano internacional, e não apenas por órgãos específicos. Confira-se o trecho do voto concorrente:

“27. Para os efeitos da Convenção Americana e o exercício da jurisdição contenciosa da Corte Interamericana, o Estado vem em forma integral, como um todo. Nesta ordem, a responsabilidade é global, tem o Estado em seu conjunto e não sujeita divisões de atribuições que remetem ao Direito Interno. Não é possível dividir internacionalmente o Estado, obrigar frente a Corte só um ou alguns de seus órgãos, entregando a estes a representação do Estado em juízo – sem que essa representação repercuta sobre o Estado em seu conjunto – e subtrair ous outros do regime convencional de responsabilidade, deixando suas atuações fora do “controle de convencionalidade” que traz consigo a jurisdição da Corte Internacional.”

     A partir da análise do voto de García Ramirez, podemos inferir que o controle de convencionalidade já se encontrava em um alto grau de desenvolvimento, uma vez que já se afirmava a obrigatoriedade de o Estado como um todo, em cumprir as obrigações convencionais. Não só as leis internas, portanto, deveriam se adequar às normas da CADH, mas também toda atitude do Estado e de seus agentes estariam vinculadas ao tratado e ao respeito aos direitos humanos.  Assim, o caso representa uma espécie de batismo de algo já existente.

     Como bem demonstrado pelos Juízes García Ramirez e Cançado Trindade em seus votos dissidentes, a impossibilidade de atribuir ao Estado uma “responsabilidade penal”, obriga-o a sentenciar os participantes do ato de violação no plano interno. Isso porque a atitude em sentido contrato faria a impunidade prevalecer sobre a justiça, em seu sentido material. A justiça material seria efetivamente atingida na medida em que a responsabilidade internacional, em complementariedade com a responsabilidade penal no plano interno, viesse a processar individualmente todos os responsáveis pela sequência de violações. Portanto, a condenação de apenas um dos responsáveis pelos feitos, como fora a de Jesus Bebeta de Alvaréz, não representa a efetiva manifestação da justiça, na medida em que o direito penal interno do Estado atuou como um manto da impunidade.

     O controle de convencionalidade recaiu em relação à invocação abusiva por parte do Estado do “secreto de Estado”. O chamado “secreto de Estado” é um instituto respaldado do art. 30 da Constituição Política da Guatemala. Este dispositivo contempla o direito dos cidadãos de obterem informações a respeito das atividades governamentais e como todo e qualquer direito não é absoluto, admitindo restrições, que operam na diminuição do âmbito de sua abrangência. O “secreto de Estado” pode ser entendido analogicamente como o que Jane Reis (2006) convencionou em chamar de “restrições expressamente estatuídas pela Constituição”[7]. Todavia, o núcleo essencial deste direito passa a ser atingido à medida que o Estado se vale do instituto, de forma ilegítima, para encobrir violações a direitos humanos, como no caso.

      Diante da situação ficou decidido pela Corte IDH, que o Estado da Guatemala seria responsável pela violação dos seguintes direitos: o direito à vida, previsto no artigo 4.1 da CADH, em razão do assassinato da ativista, Myrna Mack Chang; o direito a integridade pessoal, contemplado pelo artigo 5 da Convenção, tendo em vista as perseguições e ameaças sofrida pela vítima direta e seus familiares imediatos; e o direito de acesso à justiça, formado pelo liame entre os artigos 8 , 25  e 1.1, envolvendo o direito garantias judiciais, proteção judicial e a obrigação de respeitar os direitos assumidos na CADH. Quanto a este último ponto é digno salientar a importância fulcral do amplo acesso à justiça, que deve ser pressuposto para a efetivação de todos os demais, constituindo-se, assim, como um “direito ao direito”[8]. O acesso à justiça deve compreender, como bem salientou García Ramirez em seu voto concorrente, o acesso tanto a justiça formal quanto a justiça material, o que demonstra o vínculo intrínseco entre o devido processo legal e a concretização de um direito.

      Tendo em vista as considerações a respeito do caso Myrna Mack Chang vs Guatemala (2003), ressaltamos a importância do presente julgado em realizar o controle da compatibilidade dos atos estatais com a CADH, o que foi denominado em voto concorrente como controle de convencionalidade. A “espinha dorsal” desta operação ou deste instituto Já estava presente no Barrios Altos vs Perú (2001), quando afirma que leis que contrariem À CADH “carecem de efeitos jurídicos”. O controle de convencionalidade – ainda que sem o termo – já estava presente, portanto, na jurisprudência da Corte IDH. O voto de Sérgio Gargia Ramirez, portanto, apenas dá “nome aos bois” ou batiza com um termo um entendimento da Corte IDH. Por fim, vale destacar que o instituto só aparecerá no Plenário da Corte IDH nos casos Almonacid Arellanos y otros vs Chile (2006); Trabalhadores desligados do Congresso (Aguadao Alfaro e outros) vs Peru (2006; )Gelman vs Uruguay (2011); e, Cabrera García y Montiel Flores vs México (2010), que serão objetos de futuras análises aqui na Casoteca da Corte IDH.

 


[1] Professor Adjunto de direito Constitucional da FND-UFRJ. Coordenador do NIDH. E-mail: [email protected]

[2] Monitora de Direito Constitucional. Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Avançado de Governador Valadares. Monitora de Instituições do Direito. E-mail: [email protected]

[3] Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Avançado de Governador Valares. E-mail:  [email protected]

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Controle de convencionalidade (na perspectiva do direito brasileiro). In: MARINONI, Luiz Guilherme; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Controle de convencionalidade. Brasília: Gazeta Jurídica, ABDPC, 2013.p.71 (nota de rodapé) : “A Corte Interamericana de Direitos Humanos utilizou a expressão ‘control de convencionalidad, pela primeira vez (25 de novembro de 2003), no julgamento de ‘Myrna Mack Chang v. Guatemala.”

[5]O caso se iniciou com o assassinato do advogado e ativista de Direitos Humanos, Gilson Nogueira de Carvalho, na região metropolitana de Natal. Coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, investigava os crimes de extermínio dos “Meninos de Ouro” e o envolvimento do Secretário Adjunto da Segurança Pública, junto ao Sub Secretário da Defesa Social, na formação do grupo. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Todavia, não ficou demonstrado ante a Corte o envolvimento do Estado no caso de violação. Caso Nogueira de Carvalho e Outros versus Brasil. Sentença de 28 de novembro de 2006.

[6] TRINDADE, A. A. C. Memorial em Prol de uma Nova Mentalidade Quanto à Proteção dos Direitos Humanos nos Planos Internacional e Nacional. In: Arquivos de Direitos Humanos. Renovar: São Paulo, 1999.

[7] PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: Uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios, Capítulo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

[8] LEGALE, Siddharta; VAL, Eduardo Manuel. As “Mutações Convencionais” do Acesso à Justiça Internacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In:  VI ENCONTRO INTERNACIONAL DO CONPEDI – COSTA RICA, 2017, Florianópolis. Direitos Humanos, Direito Internacional e Direito Constitucional: Judicialização Processo e Sistemas de Proteção I. Florianópolis: 2017. p. 83 – 108.

2 Responses

  1. Pingback : Opinião consultiva n° 14/94 da Corte IDH: controle ou aferição de convencionalidade? – NIDH

  2. Jhony Abranches Romero

    O Magistrado Sérgio Garcia Ramirez, e o juiz Cançado Trindade, de modo geral, não fizeram nada além do que já estava previsto em lei, pois a Guatemala já havia reconhecido a competência contenciosa da corte IDH desde março de 1987, sendo assim, já estava sujeita a sua jurisdição. E mesmo com isso, vimos diversas violações dos direitos humanos de Myrna Mark Chang. O Estado, através do Ministro de Relações Exteriores, tem uma interpretação declarativa ao assumir sua culpa diante do caso e se comprometer na efetivação do processo penal na jurisdição interna, ou seja, o Estado chegou a mesma conclusão do que se encontrava expressamente escrito no ordenamento jurídico da época. Além disso, nota-se o tipo de interpretação extensiva quando o sentido de vítima é ampliado aos demais personagens da história, dando a eles respaldo e medidas provisórias que seriam ao favor da segurança dos mesmos.

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