Para uma Filosofia dos Direitos Humanos
Na Filosofia do Direito, é clássica a discussão sobre a fundamentação teórica dos direitos humanos. Direitos humanos derivam de valores universais, reconhecidos por todos os povos da terra? Ou constituem-se em tentativas, de culturas específicas, de impor às demais suas concepções particulares acerca do homem? Existem bens – materiais e espirituais – que deveriam ser reconhecidos a qualquer sujeito, independentemente da região do globo onde tenha nascido? Liberdade, igualdade, integridade corporal e psíquica, segurança e propriedade são direitos de todos, limites absolutos à discricionariedade das nações soberanas? Não são, evidentemente, questões fáceis. Embora alguns autores – como o jurista Antônio Augusto Cançado Trindade – entendam que já não é mais o momento de justificar, mas, sim, de garantir e aplicar os direitos humanos universais, fato é que o problema da fundamentação de liberdades e garantias transculturais sempre se impõe, face a necessidade, em um cenário internacional multipolar, de conciliar os interesses de Estados diversos. Abaixo, propomos um pequeno rol de obras que enfrentam a temática, e que poderiam servir como base para uma filosofia dos direitos humanos.
1) O Direito e os direitos humanos (1983), de Michel Villey
Neste opúsculo, o célebre filósofo Michel Villey desenvolve uma crítica ao conceito de ‘direitos humanos’. Baseando-se na tradição aristotélico-tomista, Villey concebe o Direito como debitum, isto é, como “coisa devida”. Para Villey, Direito é um comando, imperativo-atributivo, que obriga um sujeito (ou mais) a reconhecer(em) a outro um bem (material ou espiritual). Nesse sentido, o universo jurídico é sempre relacional e conjuntural, representa uma regra de reparto de recursos disponíveis. Assim, categorias como ‘liberdade’ e ‘igualdade’ não poderiam ser objeto do Direito. Vale destacar que, com o tempo, Villey terminou por abandonar sua perspectiva inicial, passando a considerar que a concepção aristotélico-tomista do Direito e o discurso contemporâneo dos direitos humanos seriam compatíveis.
2) Contribuição ao personalismo jurídico (1954), de Edgar Godoy da Mata Machado
Há bens jurídicos que nos são devidos por convenção – “comprei essa caneta, logo, ela me pertence!”. E há bens jurídicos que nos são devidos por natureza, pois revelam-se imprescindíveis para que nos realizemos como pessoas. Partindo desse pressuposto (derivado do neotomismo do filósofo francês Jacques Maritain), Mata Machado irá propor uma concepção personalista de dignidade, marcadamente influenciada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Todo ser humano busca a autorrealização – e, embora os parâmetros que nos permitam considerar um indivíduo como realizado ou não variem, de acordo com o tempo e o lugar, seria possível, na visão de Mata Machado, pensar em critérios objetivos para postular os bens imprescindíveis a qualquer um.
3) A filosofia da dignidade humana, vols. 1 e 2 (2011), de Karine Salgado
Karine Salgado procura demonstrar como, na Cristandade Medieval, desenvolve-se a noção de que a pessoa humana – feita a imagem e semelhança de Deus – é dotada de valor absoluto. Revisando o pensamento moral e jurídico de diversos intelectuais ao longo da história do Medievo, Salgado ressalta a contribuição do cristianismo para o desenvolvimento do conceito de dignidade humana. A autora revela, ainda, como os pressupostos religiosos desses teóricos acabou representando um empecilho para um discurso teoricamente articulado acerca dos direitos humanos se consolidasse.
4) A invenção dos direitos humanos (2007), de Lynn Hunt
A historiadora norte-americana Lynn Hunt rastreia, na filosofia iluminista e na arte romântica do século XVIII, as matrizes dos direitos humanos. Por um lado, temos a doutrina moderna dos direitos naturais, desenvolvida pelos contratualistas do Antigo Regime e consolidada pelo Esclarecimento; por outro, a ênfase da literatura romântica (de Rousseau em diante) na empatia para com a dor e o sofrimento do próximo. Um e outro elemento, para Hunt, forjariam uma nova compreensão do ser humano, como ente dotado de valor intrínseco (dignidade).
5) A Era dos Direitos (1990), de Norberto Bobbio
A partir da intuição de Karel Vasak, Norberto Bobbio irá desenvolver a tese das gerações de direitos fundamentais. Na visão do autor, da Revolução Francesa aos nossos dias, assistimos a três momentos de desenvolvimento das garantias e das liberdades, no Ocidente. As três gerações equivaleriam aos lemas da bandeira revolucionária: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. No primeiro momento (século XIX), sob a égide da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e do Código Napoleão, foram consolidados os direitos civis e políticos. No segundo momento (primeira metade do século XX), com nítida inspiração na Constituição Mexicana de 1917 e na Constituição de Weimar de 1919, foram postulados os direitos sociais (trabalho, seguridade social etc.). E, no terceiro momento (segunda metade do século XX), no encalço da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, serão alçados ao primeiro plano os direitos difusos (ao meio ambiente, ao patrimônio cultural etc.).
6) Cidadania no Brasil: o longo caminho (2001), de José Murilo de Carvalho
Um dos maiores historiadores brasileiros, José Murilo de Carvalho irá mostrar como a teoria das gerações dos direitos fundamentais se revela inaplicável, quando analisamos o desenvolvimento constitucional brasileiro. Carvalho – que tem estudos seminais acerca do Segundo Império e da República Velha, como o clássico Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (1987) – argumentará que, em nosso país, a expansão de direitos sociais sempre se deu à custa do sacrifício de direitos civis e políticos. Regimes ditatoriais – como o Estado Novo e o Regime Militar – se valeram, reiteradas vezes, de uma retórica de defesa do trabalho como artifício para restringir liberdades individuais.
7) Estarão as prisões obsoletas? (2018), Angela Davis
Considerada uma das mais proeminentes filósofas marxistas dos EUA, Angela Davis porá a nu, nesta obra, os laços entre neoliberalismo e encarceramento em massa. Da perspectiva da autora, a Guerra às Drogas é deflagrada, no Ocidente, com a crise do Estado de Bem-Estar Social, servindo como uma justificativa para encaminhar grandes contingentes populacionais (profundamente afetados pela precarização das relações trabalhistas) para a marginalidade. Davis mostra como a política de segurança dos Estados modernos se encontra estreitamente associada aos interesses do capital, representando um sistema de exclusão sistemática de pretos e pobres. Embora não trate, diretamente, de direitos humanos, o texto de Davis – um libelo abolicionista – permite que interpretemos, de forma desencantada, as estratégias governamentais para, a um só tempo, sustentar, no campo da teoria, a afirmação dos direitos humanos, e garantir, no campo da práxis, a exclusão reiterada de comunidades inteiras.
Para mais informações: https://cercofnd.blogspot.com/2020/04/filosofia-do-direito-fndufrj.html