Junya Barletta[1]
No dia 22 de dezembro de 1995, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) submeteu à Corte Interamericana (Corte IDH) uma demanda contra o Estado equatoriano, que apontava violações aos seguintes artigos da Convenção Americana: 5 (direito à integridade pessoal), 7 (direito à liberdade pessoal), 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial). As violações aduzidas se referiam à prisão do Sr. Rafael Ivan Suárez Rosero por policiais equatorianos, em razão de suspeita de seu envolvimento com organização internacional dedicada ao tráfico ilícito de entorpecentes.
A Corte IDH considerou como fatos comprovados que o Sr. Rosero foi detido em 23 de junho de 1992, sem ordem emitida por autoridade competente e fora das hipóteses de flagrante delito, e que, ao prestar declarações aos policiais no dia de sua prisão, não fora acompanhado por defensor. Considerou ainda que o preso fora mantido incomunicável por trinta e cinco dias, sendo que nos primeiros trinta dias, permaneceu em cela de estabelecimento policial de aproximadamente quinze metros quadrados, úmida e pouco ventilada, compartilhada com outras dezesseis pessoas, sem assistência de advogado e visitas de familiares.
Após 49 dias de prisão, foi formalmente decretada a prisão preventiva do Sr. Rosero e em novembro do mesmo ano, foi acusado do cometimento do delito de transportar drogas com o intuito de destruí-las e ocultar as evidências.
Os dois pedidos de revogação da prisão preventiva, feitos pelo imputado em 1992 e 1993 foram denegados, assim como o habeas corpus interposto em 1993 perante a Corte Suprema de Justiça do Equador. Em julho de 1995, na fase plenária do processo, o Presidente da Corte Superior de Justiça de Quito entendeu que não estavam presentes os requisitos da prisão preventiva do réu, ordenando que fosse colocado em liberdade. Ainda assim, tal decisão foi objeto de revisão perante a Corte Superior de Justiça de Quito, em razão de exigência prevista em lei especial sobre substâncias estupefacientes e psicotrópicas. Em 16 de abril de 1996, a Corte Superior de Justiça concedeu a liberdade ao Sr. Rosero, cuja ordem foi cumprida em 29-04-1996, três anos e dez meses depois da data da prisão.
Em setembro de 1996, o Sr. Rosero foi condenado pelo crime de ocultação de tráfico ilícito de entorpecentes à pena privativa de liberdade de dois anos, com a determinação de comutação do tempo em que o réu pemanecera em prisão preventiva. Além disso, foi imposto ao condenado uma multa de dois mil salários mínimos.
Em considerações preliminares sobre a matéria, a Corte manifestou-se sobre a contestação oferecida pelo Estado equatoriano, que requeria o rechaço e arquivo da demanda sob a alegação de que existiam provas seguras de que o Sr. Suárez Rosero cometera delito muito grave relacionado ao narcotráfico, que atentava contra todo o povo equatoriano. A Corte IDH considerou que a inocência ou a culpabildade do Sr. Rosero não era objeto da demanda em questão, e sim matéria a ser discutida perante o tribunal penal competente do Equador.
Em seguida, ao analisar o mérito, a Corte declarou, por unanimidade, que o Equador violou, em prejuízo do Sr. Suarez Rosero, os artigos 2, 5, 7, 8 e 25 da Convenção Americana.
A Corte entendeu primeiramente que o ato de prisão do suspeito foi ilegal e arbitrário, ofendendo os artigos 7.2 e 7.3 da CADH. A prisão foi considerada ilegal por que efetuada em desconformidade com a Constituição Política do Equador, que exige flagrante delito ou ordem judicial, bem como que a situação de flagrância e a incomunicabildade do preso não poderão ser mantidas por mais de vinte quatro horas. In casu, o imputado não foi preso em flagrante, o que exigiria que a prisão se desse através de mandado judicial, o que também não ocorreu. Além disso, a primeira manifestação judicial sobre o caso ocorreu mais de um mês depois da prisão, e o preso foi mantido incomunicável por 35 dias, contrariando mais uma vez a Constituição do Equador.
A Corte considerou ainda que a prisão foi arbitrária porque a vítima permaneceu presa durante um mês em dependência policial inadequada para custodiar presos e que a lavratura do auto ocorreu muito tempo depois da prisão.
Com relação à medida de incomunicabilidade do preso, a Corte firmou entendimento de que deverá ter caráter excepcional, estar limitada ao período definido expressamente em lei, e destinar-se a impedir a interferência do preso na investigação dos fatos. Além disso, durante o regime de incomunicabilidade, o Estado deverá assegurar ao preso as garantias inderrogáveis previstas na CADH, especialmente o direito a questionar a legalidade da medida e o acesso à assistência jurídica efetiva.
A Corte entendeu ainda que o Estado equatoriano violou a obrigação exigida no artigo 7.5 da CADH, de conduzir o preso, sem demora, à presença de um juiz, considerando que o Sr. Rosero jamais compareceu pessoalmente perante autoridade com poderes judiciais para ser informado acerca da acusação que lhe era feita.
Outra conclusão importante da Corte foi que o Equador violou os artigos 7.6 e 25 da CADH. A Corte entendeu que tais violações se deram porque o imputado não teve acesso a um meio simples, fácil, rápido e eficaz de impugnação judicial da legalidade de sua prisão, uma vez que o habeas corpus por ele impetrado somente foi julgado depois de mais de quatorze meses de sua interposição, para então ser denegado porque o impetrante não havia fornecido certos dados, que não são requisitos exigidos pela legislação do Equador.
Nesta oportunidade, a Corte invocou a importância do instrumento do habeas corpus, não apenas para cumprir com a finalidade de garantir a liberdade, mas também a vida e a integridade pessoal do preso, prevenindo o seu desaparecimento forçado e a indeterminação dos locais de prisão. Neste sentido, ressaltou a importância da exigência, no habeas corpus, da apresentação pessoal do preso perante a autoridade competente para conhecer da legalidade da prisão.
Ao verificar que o processo penal durou mais de 50 meses, e que a prisão preventiva do Sr. Rosero estendeu-se por um prazo de 3 anos e 10 meses, em contraste com a pena máxima de prisão cominada para o delito imputado (dois anos), a Corte entendeu que o Equador violou os artigos 7.5 e 8.1 da Convenção Americana, que consagram o direito do processado de ser julgado em um prazo razoável ou a ser posto em liberdade.
Nesta oportunidade, a Corte reiterou seu entendimento, firmado no caso Genie Lacayo, sobre o conceito de “prazo razoável”. Assim, a Corte IDH asseverou que o prazo razoável a que faz referência os artigos 7.5 e 8.1 da CADH tem como finalidade impedir que os acusados pemaneçam durante largo tempo sob acusação e assegurar que esta se decida rapidamente, considerando-se que tal prazo deverá abranger todo o procedimento, inclusive os lapsos temporais relativos aos recursos eventualmente interpostos. Para se verificar a razoabilidade do prazo, a Corte elegeu, em conformidade com a Corte Europeia de Direitos Humanos, três critérios orientadores: (i) a complexidade da matéria; (ii) a atividade processual do interessado; e (iii) a conduta das autoridades judiciais.
A Corte também entendeu que a prisão preventiva prolongada do Sr. Rosero violou o princípio de presunção de inocência, estabelecido no artigo 8.2 da CADH, aproveitando para firmar entendimento sobre este postulado fundamental. Segundo a Corte, a presunção de inocência é a base de sustentação ou razão de ser de todas as garantias judiciais, e princípio do qual decorre o dever estatal de não restringir a liberdade do preso para além dos limites estritamente necessários a assegurar que este não impedirá o desenvolvimento eficiente das investigações bem como a ação da justiça, pois a prisão preventiva é uma medida cautelar, não punitiva.
A Corte sustentou que a presunção de inocência está intimamente ligada à excepcionalidade da prisão processual, regra firmada em vários instrumentos internacionais de direitos humanos, dentre eles, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. A Corte ainda asseverou que o princípio de presunção de inocência busca impedir que acusados sejam privados de liberdade durante o processo por um prazo desproporcional àquele correspondente à pena, o que corresponderia a uma evidente antecipação desta última, contrária aos princípios gerais do direito universalmente reconhecidos.
Importante observar primeiramente que a Corte condicionou a excepcionalidade da prisão processual a apenas duas possibilidades, que são limites – de natureza processual – de sua justificação ou legitimação: quando seja necessária para assegurar a eficácia das investigações, e da mesma forma, a ação da justiça. Além disso, é fundamental perceber que, ao estabelecer tais limites, a Corte não fez qualquer referência à gravidade do delito imputado ao Sr. Rosero. Isso demonstra que o significado e alcance do princípio de presunção de inocência, como regra a nortear a excepcionalidade na prisão preventiva, não poderão ser restringidos em razão da natureza ou gravidade do crime imputado, assim como em razão de outros critérios extra-processuais. Este entendimento da Corte se tornará, em decisões posteriores, cada vez mais explícito.
A Corte também declarou a violação pelo Equador do artigo 8.2, alíneas c, d e e, da Convenção Americana, porque, nos primeiros trinta e seis dias de prisão, o Sr. Rosero não pôde contar com assistência de um defensor público, e ao constituir advogado, não teve a possibilidade de com ele se comunicar de maneira livre e privada. A Corte entendeu que, em decorrência destas privações, o acusado não teve a oportunidade de preparar devidamente a sua defesa.
Por fim, a Corte entendeu que o Sr. Rosero foi vítima de tratamento cruel, desumano e degradante porque permaneceu durante trinta e seis dias em cela diminuta com vários outros presos, sem comunicação com o mundo exterior e especialmente com sua família, em condições precárias de higiene e submetido à violência física e psicológica.
Ademais, a Corte reconheceu que o artigo 114-bis do Código de Processo Penal do Equador violava a obrigação, prevista no artigo 2 da CADH, de os Estados adotarem as medidas necessárias para tornar efetivos os direitos assegurados na Convenção. O Código de Processo Penal equatoriano, ao prever limite temporal à duração da prisão preventiva, excluia deste direito os acusados de crimes tipificados em lei especial sobre substâncias estupefacientes e psicotrópicas. A Corte considerou que tal exceção despojava uma parte considerável da população carcerária de um direito fundamental, de maneira discriminatória, e concluiu que o Equador não tomara as medidas de direito interno necessárias a fazer efetivo o direito reconhecido no artigo 7.5 da CADH.
Assim, a Corte determinou que o Equador adotasse as medidas necessárias para assegurar que as violações aos direitos humanos reconhecidas na sentença não voltassem a ocorrer, e que se investigasse, identificasse e, eventualmente, sancionasse os responsáveis por tais violações. Também se determinou que o Estado pagasse justa indenização à vítima.
É importante assinalar que, em alegações orais na fase de reparações e custas, o Equador respondeu à recomendação da CIDH sobre a necessidade de se modificar a disposição legal contida no artigo 114 de seu Código de Processo Penal, informando que em 24-12-1997, o Tribunal Constitucional do Equador declarou inconstitucional o artigo citado. Não obstante, a CIDH havia também se manifestado pela importância transcendental de um efetivo agir do Equador com o objetivo de remediar as deficiências sistemáticas de seu sistema penal, mediante a promulgação de leis internas, de maneira a prevenir a detenção prolongada de pessoas em condições de incomunicabilidade, bem como a adoção das medidas necessárias para o efetivo cumprimento das garantias judiciais.
Em resposta, o Equador apresentou cópia de lei aprovada em 18-12-1997, que modificou o Código de Ejecución de Penas y Rehabilitación Social e a Ley de Sustancias Estupefacientes y Psicotrópicos, que a Corte entendeu, no entanto, que incluía disposição similar a que foi declarada violatória da Convenção na sentença de mérito. A Corte considerou, contrariamente ao aduzido pelo Equador, que a nova lei não constituía medida adequada para o cumprimento da sentença referida e reiterou a obrigação do Estado equatoriano em reconhecer os direitos consagrados na Convenção Americana a todas as pessoas sob a sua jurisdição, sem exceção alguma.
Pode-se concluir que o Caso Suárez Rosero vs. Equador é uma referência fundamental em matéria de prisão cautelar: nesta decisão, a Corte IDH assentou e sistematizou princípios limitadores da prisão provisória que vinham sendo desenvolvidos de maneira escassa e parcial em casos contenciosos anteriores. Tais princípios passaram a ser reiterados em decisões subsequentes da Corte IDH, inclusive em orientações e recomendações da CIDH, através de um processo paulatino e crescente de sistematização e aprofundamento dos limites à decretação de prisões cautelares.
[1] Professora Adjunta de Prática Penal da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. E-mail: [email protected]
O caso Suárez Rosero vs Equador (1997) da Corte IDH, trata-se de um demanda da Comissão Interamericana contra o Estado Equatoriano,que apontava violação de vários artigos da Convenção Americana.Tais violações se referiam à prisão do Sr. Rafael Ivan Suárez Rosero por policiais equatorianos, pois o mesmo era acusado de envolvimento com organização internacional de tráfico ilícito de entorpecentes. Ao ser preso, não teve respeitada, pelas autoridades locais, sua dignidade da pessoa humana.
De forma declarativa, a Corte determinou que o Equador adotasse medidas necessárias para assegurar que a violação aos direitos humanos não voltasse a ocorrer, pois a citada prisão teve princípios jurídicos constitucionais desrespeitados.
Enfim, pode-se concluir que o caso Suárez Rosero vs Equador é uma referência fundamental em matéria de prisão cautelar. Nesta decisão, a Corte IDH de modo lógico-sistemático assentou, regularizou e sistematizou princípios limitadores da prisão provisória.
O caso Suárez Rosero vs Equador (1997) da Corte IDH, trata-se de uma demanda da Comissão Interamericana contra o Estado Equatoriano,que apontava violação de vários artigos da Convenção Americana.Tais violações se referiam à prisão do Sr. Rafael Ivan Suárez Rosero por policiais equatorianos, pois o mesmo era acusado de envolvimento com organização internacional de tráfico ilícito de entorpecentes. Ao ser preso, não teve respeitada, pelas autoridades locais, sua dignidade da pessoa humana.
De forma declarativa, a Corte determinou que o Equador adotasse medidas necessárias para assegurar que a violação aos direitos humanos não voltasse a ocorrer, pois a citada prisão teve princípios jurídicos constitucionais desrespeitados.
Enfim, pode-se concluir que o caso Suárez Rosero vs Equador é uma referência fundamental em matéria de prisão cautelar. Nesta decisão, a Corte IDH de modo lógico-sistemático assentou, regularizou e sistematizou princípios limitadores da prisão provisória.