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MENDONZA E OUTROS VS. ARGENTINA (2013): REDESENHANDO UM SISTEMA DE JUSTIÇA JUVENIL A PARTIR DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

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Hamilton Gonçalves Ferraz[1]

      Em 14 de maio de 2013, a Corte IDH declarou internacionalmente responsável o Estado argentino por violações de direitos humanos cometidas ao impor penas de privação perpétua de liberdade a cinco pessoas por delitos cometidos durante a infância (César Alberto Mendoza, Lucas Matías Mendoza, Ricardo David Videla Fernández, Saúl Cristian Roldán Cajal e Claudio David Nuñez).

      A Corte IDH decidiu com base nas seguintes razões: (i) os Códigos processuais penais aplicados não permitiam uma revisão ampla das sentenças por um juiz ou tribunal superior; (ii) não foi dada adequada atenção médica a Lucas Matías Mendoza, o que levou à perda de sua visão; (iii) Lucas e Claudo David Nuñez foram submetidos a tortura durante seu encarceramento, sem que o Estado tenha investigado estes fatos adequadamente; e (iv) não foi investigada adequadamente a morte de Ricardo David Videla Fernándes, enquanto este se encontrava sob custódia do Estado.

     Para além da estipulação de deveres de reparação às vítimas e de investigação dos delitos praticados contra elas (o que será devidamente analisado ao final), no que diz respeito ao sistema de Justiça Juvenil, o caso “Mendoza e outros” consagra um controle de convencionalidade[2] operado pela Corte IDH sobre a legislação juvenil argentina, declarando-a incompatível com a CADH e impondo sua modificação pelo Estado[3].

      Vale ressaltar, para esclarecer os fatos submetidos a exame pela Corte IDH, que os referidos menores de idade, para além de restar provada sua origem pobre e socialmente marginal, praticaram crimes graves durante seu período de menoridade (como, por exemplo, roubo qualificado e homicídio qualificado).

      No caso “Mendoza e outros”, a Corte IDH analisou, primeiramente, a maioridade penal na Argentina. À época dos fatos, segundo a legislação então vigente, as vítimas deveriam ter recebido tratamento especial como menores de idade até cumprirem a maioridade aos 21 anos. Tal fato e a forma com que se deveria se dar esse “tratamento especial” não restou esclarecido pelo representante do Estado argentino.

      Em um segundo momento, analisou-se brevemente a Lei n. 22.278/1980, modificada pela última vez em 1989 pela Lei n. 23.742. Trata-se de uma lei de responsabilização juvenil, concebida e promulgada pela última ditadura militar, ainda hoje vigente, aplicável a menores de idade que, no momento da comissão do fato delitivo que se lhes imputa ainda não tenham cumprido 18 anos de idade.

      A Lei n. 22.278/1980 estabelece as seguintes distinções: (i) a partir dos 18 anos, regime penal adulto; (ii) abaixo de 18 anos, regime diferenciado. Estabelecem-se dois subgrupos: (a) menores de 16 anos, que não são puníveis e (b) menores entre 16 e 18 anos, que são puníveis, desde que tenham praticado delito de ação pública a que seja cominada uma pena maior a dois anos de prisão.

      A Corte IDH criticou severamente o formato tutelar da referida legislação, uma vez que ela não prevê limitação temporal para as medidas. Um menor de idade, ao completar 18 anos, e tendo sido submetido a tratamentos tutelares por um período de pelo menos um ano, pode vir a sofrer uma pena dentre as previstas no Código Penal argentino (cf. art. 4º, Lei 22.278). A pena passa a depender, fundamentalmente, de indicadores subjetivos como os que caracterizam o período de tratamento tutelar.

      Passando às considerações da Corte IDH, verifica-se que ela retomou a jurisprudência firmada no Caso Villagrán Morales vs Guatemala (1999) e OC n. 17/02[4], baseando sua sentença nos princípios do interesse superior da criança, autonomia progressiva e participação da criança, como informadores relevantes no desenho e operação de um sistema de responsabilidade penal juvenil. Corolários a estes postulados, a Corte IDH enunciou o princípio de tratamento diferenciado entre adultos e menores de idade, e, consequentemente, o princípio da proporcionalidade como orientador da sanção cabível a menores de idade que tenham praticado delitos durante a menoridade.

     Indo além da mera afirmação da proporcionalidade, o ponto crucial da sentença está nos critérios desenvolvidos para verificar ou não a arbitrariedade das sanções de privação de liberdade aplicadas a menores de idade. A Corte IDH enumerou três parâmetros[5] para essa análise: a) ”ultima ratio” e máxima brevidade, no maior sentido restritivo possível; b) delimitação temporal desde o momento de sua imposição, proibindo-se a aplicação de penas privativas de liberdade com duração indeterminada ou que redundem na privação de dito direito de forma absoluta; c) revisão periódica das medidas de privação de liberdade de menores de idade. Ou seja, para a Corte IDH, uma sanção de privação de liberdade contra menores de idade não é arbitrária quando ela é o mais breve e excepcional possível; é delimitada temporalmente desde sua imposição e possibilita sua revisão periódica.

     A medida de privação de liberdade relativa a menores de idade deve obedecer, também, ao princípio do interesse superior da criança e a máxima satisfação de seus direitos, tendo por finalidade sua reintegração social.

     Dessa forma, o tribunal considerou que a prisão e reclusão perpétuas, por sua própria natureza, não cumprem com a finalidade de reintegração social de menores de idade, pois implicam em máxima exclusão, com sentido meramente retributivo. Não são, dessa forma, proporcionais.

     Vale notar que a Corte IDH reconheceu, na sequência, que a desproporcionalidade das penas impostas e seu alto impacto produzido sobre os menores de idade, pelas considerações já assinaladas, constituíram tratos cruéis e desumanos, em violação aos direitos reconhecidos nos arts 5.1 e 5.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), afetando também os direitos de seus familiares.

     O Estado argentino foi, dessa forma, responsabilizado em três níveis. No primeiro estão as medidas de reparação integral às vítimas e suas famílias – reabilitação, satisfação e garantias de não repetição. Assegurou-se a obrigação do Estado argentino a prover toda a assistência médica, psicossocial e educacional necessária, e, quanto à garantia de não repetição, o dever de modificação do direito interno, suprimindo-se as normas e práticas de qualquer natureza que representem violação a garantias previstas na CADH, e impondo-se expedição de normas e desenvolvimento de práticas condizentes à efetiva observância de garantias.

     Muito embora a Argentina tenha promulgado lei de garantias e proteção integral a crianças e adolescentes (a Lei 26.061/05), a Corte IDH observou que ela regulou somente aspectos procedimentais. Uma vez que as sanções penais ainda se regem pela Lei n. 22.278/1980 e pelo Código Penal argentino, que seguem vigentes, o Estado continuaria descumprindo o art. 2º da CADH, em relação com arts 7.3 e 19. Ainda neste ponto, vale destacar a obrigação de capacitação dos agentes estatais responsáveis pelo tratamento de crianças e adolescentes nas instituições correcionais argentinas, com vistas a prevenir e erradicar a prática de tortura nesses estabelecimentos.

     Em um segundo nível, a Corte IDH impôs a obrigação de investigar, processar e punir os responsáveis pelas violações de direitos humanos sofridas pelas vítimas. Consagrou-se o dever do Estado argentino em: (i) investigar, processar e punir os responsáveis a morte de Ricardo David Videla Fernández (morto quando ainda institucionalizado), garantindo-se aos seus familiares plenos direitos de participação e acesso às investigações e processamento dos fatos; (ii) investigar, processar e punir os responsáveis pela tortura sofrida por Lucas Matías Mendoza e Claudio David Núñez, tudo isso em prazo razoável.

     Em um terceiro nível, estipularam-se as indenizações compensatórias em termos de danos materiais e morais sofridos pelas vítimas e seus familiares, advindos das violações de direitos humanos perpetradas pelo Estado argentino consubstanciadas na imposição aos jovens a pena perpétua, na falta de atendimento médico a Lucas Matías Mendoza (o que acarretou em sua cegueira), nas torturas sofridas por Claudio David Núñez e Lucas Matías Mendoza, na falta de investigação séria destes fatos, e na morte de Ricardo Videla.

     O que se destaca do Caso “Mendoza e Outros x Argentina” são suas implicações para os desenhos principiológicos, normativos e institucionais de um sistema de justiça juvenil de acordo com o direito internacional dos direitos humanos. Ainda que de forma mais incidental, a Corte IDH forneceu parâmetros concretos e explícitos para uma responsabilização juvenil convencionalmente adequada e, com isso, firmou um precedente com enorme potencial de alcance e desdobramento, principalmente no que diz respeito aos debates parlamentares e propostas legislativas de recrudescimento punitivo sobre crianças e adolescentes, um movimento de nítido retrocesso em direitos e garantias fundamentais que se observa de modo geral nos países da região, mas, de modo mais sensível e preocupante no Brasil.


[1] Doutorando em Direito (PUC-Rio). Mestre em Direito Penal (UERJ). Bacharel em Direito (UERJ). Professor Substituto de Direito Penal e Criminologia (UFRJ). Advogado. Contato: [email protected]

[2] Chama-se controle de convencionalidade o ato de analisar a compatibilidade das leis de direito interno com os tratados de Direitos Humanos reconhecidos pelos Estados no plano internacional, tendo como parâmetro a CADH. Essa forma de controle vem se desenvolvendo na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua competência consultiva e contenciosa, firmando um sistema de precedentes valiosos, principalmente a partir do Caso Barrios Altos vs. Peru (2001). Sobre isto, conferir SILVA, Ângela Vitória Andrade Gonçalves da; PÊGAS, Lucas Tavares Pereira. Barrios Altos vs. Peru (2001): as origens do controle de convencionalidade. Disponível em: <https://www.debatesvirtuais.com.br/barrios-altos-vs-peru-2001-as-origens-do-controle-de-convencionalidade/> .

[3] Com base lições de Nestor Pedro Sagüés sobre o controle de convencionalidade, vale notar como o caso representa exemplo de controle em suas facetas destrutiva (impondo rechaço à legislação local contrária à CADH e à interpretação da Corte IDH) e construtiva (obrigando mudanças positivas na legislação nacional e em sua interpretação judicial). Sobre o tema, por todos, SAGÜÉS, Nestor Pedro. Obligaciones internacionales y control de convencionalidad. Estudios Constitucionales, Año 8, Nº 1, 2010, pp. 117 – 136.

[4] FERRAZ, Hamilton Gonçalves. A Opinião Consultiva n. 17/02 da Corte Interamericana: um marco na proteção internacional a crianças e adolescentes. Disponível em: < https://www.debatesvirtuais.com.br/a-opiniao-consultiva-n-1702-da-corte-interamericana-um-marco-na-protecao-internacional-a-criancas-e-adolescentes/>

[5] Como leciona Siddharta Legale, parâmetros consistem em técnica autônoma de ponderação para atingir fundamentações racionais e justas, que procura estabelecer “relações de precedência condicionada”, presunções ou preferências em favor de um dado direito ou interesse quando presentes certas condições (“preferred rights” ou “preferred interests”). Seu emprego, na doutrina constitucional tradicional, consiste em detectar diante de quais variáveis de um interesse ou princípio deve prevalecer em relação ao outro ou, até mesmo, excepcionalmente, poderá afastar a incidência de uma regra no caso concreto. No direito internacional dos direitos humanos, parâmetros são concebidos como “um complexo combinatório de normas juridicamente vinculativas, de caráter cogente, programático ou indicador de fins, com normas de outra natureza, muitas vezes desprovidas de conteúdo imperativo, mas com grande força ética, como resoluções, recomendações, declarações, conferências e apelos”. (LEGALE, Siddharta. Standards: o que são e como criá-los? Themis – Revista da ESMESC, v. 7, n. 2, 2009, p. 30-31).

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