Home > Clínica IDH > Publicações > RESENHA – LITÍGIO ESTRATÉGICO E SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS DE EVORAH LUSCI

RESENHA – LITÍGIO ESTRATÉGICO E SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS DE EVORAH LUSCI

Loading

RESENHA DO LIVRO –

LITÍGIO ESTRATÉGICO E SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS,

DA AUTORA EVORAH LUSCI[1]

Gabriella de Queiroz Ramalho
Marina Campean
Marina Gallo
Marly Caroline Vicente Bello
Renata Dias
Victoria Rebello

 

A presente resenha foi realizada pelos seguintes alunos e alunas da Clínica Interamericana de direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a supervisão do professor Siddharta Legale com objetivo de proporcionar um debate e reflexão crítica sobre o tema que ainda possui uma escassa bibliografia sobre o tema no Brasil.

Cada capítulo foi dividido em duplas de relatores, encarregados de resumir as principais ideias, e revisores, incumbidos de rever o trabalho de síntese e de levantar questionamentos críticos ao mesmo. A presente resenha foi submetida ao debate público na sala de aula em setembro de 2018 e, agora, também no site do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos (NIDH) com intuito de fomentar também um debate virtual.

 

Capítulo I – O que é Litígio Estratégico?

Relatora: Marly Caroline Vicente Bello

Revisora: Gabriella de Queiroz Ramalho

 

O litígio estratégico surgiu de uma prática diferenciada de litígio. Ele busca alcançar por meio de mudança legislativa ou de políticas públicas uma mudança social através de casos modelos. O objetivo de tal litígio então se configura como sendo maior do que a reparação a vítima, ele busca um bem social, nesse sentido, se diferenciando da forma tradicional de advocacia.

As peculiaridades do uso do litígio estratégico nos direitos humanos são: identificar um problema nos tribunais, escolher um caso em potencial, fazer um planejamento de como seguir com o caso, avaliar a recepção do caso e buscar aliados dentro e fora dos tribunais.

Tal forma de litígio se desenvolveu a partir da frente da advocacia temática voltada a mudanças sociais em determinadas áreas. As seleções dos casos modelos são feitas por meio de uma relação de custo benefício que alcance o objetivo de forma mais impactante e gere um benefício para a sociedade.

 Foi a partir do direito de interesse público que se desenvolveu a prática do litígio estratégico, que se configura apenas como uma das formas utilizadas pelos centros de “direito de interesse público”, sendo a atuação via lobby legislativo ou campanhas públicas de reconhecimentos de direitos de suma importância também. O “direito de interesse público” se desenvolveu nos EUA na década de 60 em um movimento de garantia dos direitos civis, não havia a intenção de consolidação de regimes democráticos ou aceleração de processos de transição política como houve na América latina e em países do leste europeu, mas havia sim uma forte participação do judiciário como ferramenta de uma transformação social.

Na América latina, em especial, o “direito de interesse público” tardou devido a regimes autoritários na região, somente após a redemocratização que de fato começou-se a levar em consideração os serviços legais que podem inclusive desenvolver atividades extrajudiciais de negociação e lideranças políticas e de facilitador é animador da organização dos movimentos sociais e populares. No Brasil, a autonomia do trabalho dos serviços legais é fluida, ora se confunde com movimentos sociais, ora com partidos políticos.

 É indiscutível a dificuldade que conceituar o termo litígio estratégico, dessa forma denomina-se o mesmo de “discurso prático”.

Esclarecer a interpretação do Direito para casos futuros, treinar juízes e advogados à linguagem da proteção dos direitos humanos, documentar violações de direitos humanos, alterar a opinião pública e proteger grupos minoritários são incentivos a levar o litígio adiante mesmo que as decisões judiciais não sejam favoráveis.

Quanto a escolha dos casos paradigmáticos torna-se importante frisar que os mesmos, na maioria dos casos, envolvem novidades nas questões judiciais, busca por reconhecimento de direitos e formação de precedente judicial. Além disso, corresponde aos interesses e a agenda da entidade responsável pelo litígio, com o emprego de diferentes técnicas judiciais e não judiciais. Os casos são escolhidos pela sua capacidade de promover discussão pública, criar pressão para mudança social e legislativa, fortalecer grupos marginalizados.

O litígio estratégico pressupõe um judiciário acessível, independente e criativo, cujas decisões tenham potenciais de transformação social e que seja capaz de influenciar outros tribunais, que dialogue com o processo legislativo, por vezes sobrepondo-se a ele ou provocando a promulgação de normas.

Entretanto, o litígio estratégico esbarra em noções como separação dos poderes e guarda relação com o debate travado principalmente por cientistas políticos sobre a judicialização da política ou sobre ativismo judicial. Nesse cenário, surgem as críticas, que em sua grande maioria trazem um discurso sobre cortes não poderem decidir sobre políticas públicas e criarem direitos.

O trabalho de litígio estratégico envolve a sensibilização dos juízes de direito e a tentativa de criar mecanismos aptos a interferir em políticas públicas dentro do espaço judicial.

Analisando outros cenários vale lembrar que mesmo em casos de judiciários refratários, restritivos e conservadores, o litígio estratégico tem um papel a cumprir.  Ele pode servir para sensibilizar a corte ao tema, educando os juízes para linguagem de determinado direito, ou para adaptar às respostas judiciais aos problemas apresentados, como em casos que envolvem a implantação de políticas públicas. Ademais, uma resposta judicial negativa pode gerar debate suficiente a ponto de provocar ações futuras do próprio judiciário, mudando a interpretação em outros casos ou de outras instituições como criação de uma mudança de política pública.

Exemplificando, tal processo pode-se trazer o caso Maria da Penha em que a farmacêutica foi vítima de uma tentativa de homicídio sendo o autor do disparo seu marido e após duas semanas a vítima sofreu um novo atentado por parte do mesmo autor. O caso foi levado à Comissão interamericana de Direitos Humanos com a alegação de tolerância à violência contra a mulher no Brasil, uma vez que esse não tomou as medidas necessárias para processar e punir o agressor.  O caso Maria da Penha vs Brasil, foi o precursor na condenação de um Estado devido à violência doméstica, no âmbito de proteção dos direitos humanos. Por conta de todo esse ocorrido, em 2006, foi publicada a Lei nº 11.340 que ficou conhecida como a Lei Maria da Penha, criando mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Já no âmbito internacional, temos o caso Olmedo Bustos vs Chile, em que o filme “A última tentação de Cristo”, dirigido por Martin Scorsese, de 1988 mostraram uma nova face de Jesus Cristo, em que esse apresentava sensações como depressão, dúvida, luxúria e medo. Por esse motivo, o Estado do Chile censurou a obra por violação à honra religiosa. Quando a Corte IDH sentencia e sanciona o Estado do Chile por descumprir o artigo 13 da CADH, que defende a liberdade de expressão, vigora que o mais benéfico é o direito à liberdade de expressão e não a aplicação do artigo da Constituição chilena que autoriza à censura.

Capítulo II – Ciclo de vida do litígio estratégico no sistema interamericano: desafios e oportunidades na visão de seus atores

Relatora: Marina Gallo

Revisora: Renata Dias

     O capítulo II do livro em questão trata do ciclo de vida do litígio estratégico, que começa na escolha de um caso paradigmático de acordo com os objetivos que se quer alcançar, seguida de uma interação entre atores não estatais com fóruns que interpretam e aplicam as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e, por fim, a implementação dessas sentenças e a repercussão doméstica e internacional de seus resultados.

     A primeira fase acontece nas ONGs, consideradas o motor do sistema interamericano por serem as responsáveis pela maioria dos casos levados e por serem capazes de incorporar as decisões internamente nos respectivos países. Seus casos são escolhidos de acordo com sua área de atuação e objetivos, sendo isso de fundamental importância para a inserção de novos temas que precisam ser mais abordados, pois são poucas as decisões que desenvolveram padrões de proteção a direitos relacionados a tais assuntos.

     Para tal incorporação, utilizam o litígio estratégico como sua principal estratégia de defesa, principalmente por produzir uma jurisprudência no sistema interamericano e causar impacto no âmbito doméstico dos países. A necessidade de litigar estrategicamente se deu pelo fato de que muitos casos nos quais as entidades lidavam apenas no âmbito doméstico não obtiveram sucesso e os recursos internos se esgotavam. Dessa forma, era necessário apresentar o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e, pela dificuldade de atuar nesse sistema por seu custo excessivo e longo trâmite, a solução encontrada foi adotar um critério de qualidade dos casos, sendo o critério mais importante a repercussão doméstica.

     Nesse sentido, há quem defenda, de forma simplificada, que ONGs locais buscam justiça e reparação individual das vítimas e procuram gerar efeitos em uma dimensão coletiva, já que têm melhor percepção das alterações necessárias nas políticas públicas. Enquanto isso, ONGs internacionais e regionais geralmente buscam a formação de precedentes para o direito internacional, com objetivo de gerar transformação social.

     A segunda fase diz respeito à atuação da Comissão Internacional de Direitos Humanos, responsável por filtrar as demandas propostas e selecionar os casos que devem ser encaminhados à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Para isso, deve haver uma sensibilização da Comissão por parte dos representantes das vítimas a respeito da importância da situação. Além disso, também oferece espaço para soluções amistosas entre as vítimas e os Estados, adotando medidas de impacto coletivo, que afetem muitas pessoas. É possível perceber que alguns resultados já podem ser produzidos nessa fase.

     A terceira fase trata da atuação da Corte IDH. Nessa fase observamos grande divergência quanto a sua melhor forma de atuação. Alguns acreditam que de acordo com o excesso de demandas, se tornou inviável para a Corte IDH lidar com o grande volume de casos. Entretanto, há quem defenda que sua função é solucionar casos individuais, visando a reparação de danos, independente do critério de casos paradigmáticos. Por outro lado, há quem pensa que a Corte tem poucos casos e estes devem ser tratados objetivando causar impacto, para que futuros casos sejam resolvidos da mesma forma, ou seja, causem impacto nos tribunais domésticos, sendo as reparações materiais um aspecto secundário.

     Na realidade, o que acontece é a resolução de casos individuais voltada à parte coletiva, principalmente por meio das garantias de não repetição, que são uma inovação baseada na obrigação do Estado de se organizar para que os direitos sejam respeitados, por meio da prevenção, investigação e julgamento das violações desses direitos.  Assim, estabelece critérios abrangentes, que transcendem os órgãos domésticos e se traduzam em sentenças nacionais, tendo efeito multiplicador.

     A grande problemática dessa função da Corte está no fato de que a solução de casos individuais deixa muitas vítimas desamparadas e fora da reparação estabelecida pela sentença, pois nem todas são alcançadas, embora tenham um direito irrenunciável de serem reparadas. Por isso, é importante criar mecanismos de acesso ao sistema interamericano e às informações a respeito de seu funcionamento, para que todas as vítimas recebam a mesma reparação daquelas que são atendidas pela Corte IDH.

     Ainda há outra questão que necessita de atenção devido a sua tamanha importância. Na América Latina, não basta apenas um precedente para resolver futuros casos, são necessárias diversas resoluções para ser possível uma mudança social.

     Em todo esse contexto do ciclo do litígio estratégico apresentado, o papel dos Estados é o de adotar medidas internas visando o respeito dos direitos contidos na Convenção Americana e também a mudança nas práticas institucionais do Estado, organizando e modificando o aparato governamental e elaborando políticas públicas, ações que compõem a última fase do ciclo, junto às condutas dos organismos domésticos.

     Outro tópico do capítulo trata do procedimento para o trâmite de casos dentro da comissão, que se dá a partir de três etapas. O procedimento se inicia com cada advogado da CmIDH trabalhando com as denúncias recebidas de dois ou três países, – ainda não podem iniciar um caso contencioso na CrIDH, somente a CmIDH e os Estados têm essa competência – e realizam uma primeira avaliação do caso, e garantem que este siga os critérios de admissibilidade. Em um segundo momento, os casos selecionados são enviados ao Grupo de Abertura de Petições, que comunicam o Estado sobre a abertura do caso. Por sua vez, o Estado peticionado pode oferecer uma solução amistosa ou negar a violação. A partir disso, a comissão analisa os elementos do caso e pode decidir publicar o Informe de Admissibilidade ou encerrá-lo. Caso decida publicar o informe, o caso é encaminhado para os sete membros da comissão, eleitos pelos Estados; estes vão avaliar o caso e, se houve uma violação, elaboram o informe final.

     Ao analisar como os casos são levados ao sistema, é importante verificar que após uma reorganização, foi estabelecido que cada um passa por uma deliberação interna, onde são avaliados os impactos desejados a longo prazo, e como cada área pode colaborar com o caso específico. Após essa reforma, os casos já apresentados ao sistema interamericano foram trabalhados tendo como base a ideia de litígio estratégico.

     Antes da reforma, o critério para o envio de casos era essencialmente político, mas com o novo regulamento era esperado que o critério arbitrário de seleção fosse resolvido. Embora formalmente os critérios de admissibilidade tema que ser seguidos, ainda há dúvidas sobre a seletividade dos casos.

     Uma das críticas construídas, também antes da reforma de 2000, se formou por conta dos critérios avaliados em cada caso antes de serem levados ao sistema interamericano. Em parte, isso ocorre porque os mesmos são temáticos e estão ligados à conjuntura política do país em questão, e porque são temas prioritários na pauta da entidade, como por exemplo, a questão territorial e autoridade autônoma das comunidades indígenas.

    Entretanto, o avanço positivo da reforma permitiu a participação das vítimas como partes no processo, e não como parte da equipe da comissão ou como testemunhas, podem apresentar provas e sua própria argumentação.

     Outra crítica produzida à entidade foi a de que faltam casos com novos perfis de vítimas na jurisprudência da corte interamericana, como casos relacionados aos direitos das mulheres, apesar desta já ter avançado em alguns temas que anteriormente não recebiam tanta atenção, como direitos políticos. O surgimento de novos casos iria provocar uma mudança em todo continente, mostrando que para a proteção dos direitos humanos não estão relacionados ao rompimento do estado de direito.

      Um ponto que precisa ser ressaltado, diz respeito ao papel que as agências financiadoras promovem, que são de suma importância na escolha dos casos a serem levados ao sistema interamericano, pois estas lançam financiamentos temáticos. Entretanto, acabam limitando a possibilidade de ONGs apresentarem outras matérias relevantes, restringindo suas agendas de trabalho.

      Sem um financiamento, muitas organizações não têm condições de arcar com os custos do litígio ante ao sistema interamericano, que pode chegar até 80 mil dólares por caso – abarcam casos no âmbito doméstico e internacional. Por conta disso, outra questão levantada, é a necessidade de pluralizar o acesso ao sistema, porque esse custeio acaba fazendo com que a representação das vítimas se concentre no trabalho de poucas ONGs.

        Porém, o momento mais difícil de todo trâmite é o de retorno ao âmbito doméstico, pois mesmo que o caso termine com a sentença favorável da Corte IDH, o cumprimento da mesma é o menos desenvolvido pelas ONGs.

       No caso brasileiro, por exemplo, existem alguns fatos que dificultam a implementação das decisões do sistema interamericano, como a estrutura federativa, o dualismo jurídico, o desconhecimento por parte das autoridades governamentais (com um foco especial para as autoridades locais) e a natureza jurídica de suas decisões. No momento atual, a implementação das decisões é feita por meio de acordos ad hoc entre agentes do governo municipal, estadual e federal.

      Sendo assim, a falta de um processo institucionalizado de implementação prejudica a formação de uma cultura institucional das decisões da comissão e da corte, e este problema se desenvolve em dois níveis, onde o primeiro seria o cumprimento das reparações individuais sociais das sentenças da corte nos casos em que o Estado é demandado, e como se dá a relação das estruturas domésticas, e em casos em que e Estado não é demandado.

Capítulo III – Litígio Estratégico na Corte Interamericana e a partir de sua jurisprudência

Relatora: Marina Campean

Revisora: Victoria Rebello

     A Corte Interamericana de Direitos Humanos, dentro de suas competências principais, a consultiva e a contenciosa, cria diferentes estratégias jurídicas e forma precedentes a serem utilizados no âmbito internacional e doméstico dos países do bloco. Tanto nos casos contenciosos quanto consultivos, a interpretação de direitos está em jogo de maneira que sirvam como parâmetro para decisões futuras. A diferença está no fato de que no primeiro, por tratar da solução de um caso concreto, além da interpretação, a decisão gera obrigação internacional de reparação coletiva e/ou individual pelo estado, além da criação de estratégias de impacto social, em que buscam o máximo de repercussão.

     A autora, neste trabalho, optou pela análise jurisprudencial da Corte IDH, por conta da maior atenção e maior participação de atores não estatais nos procedimentos da Corte, especialmente após reforma do Regimento em 2000, quando os representantes das vítimas passaram a atuar como parte processual em todas as fases do procedimento contencioso, atuando de maneira independente em relação à Corte.

     Desde o início de suas atividades, em 1982, a Corte passou por diferentes períodos. Nos primeiros anos houve a total predominância da competência consultiva, com participação principalmente de ONGs internacionais e universidades. É no período de 2001 a 2006 que a Corte IDH consolida sua competência contenciosa. Este é, portanto, um período marcado pelo aumento do volume dos casos contenciosos, pluralização dos atores não estatais participantes e democratização dos países da região, com a internacionalização das ONGs domésticas latino-americanas e maior conhecimento do funcionamento do sistema interamericano.

     Para análise de um modelo de litígio estratégico na Corte IDH a partir de um caso concreto, a autora escolheu o Caso Claude Reys e outros vs. Chile– que trata do direito de acesso à informação sob domínio de órgãos do estado. A escolha foi feita justamente pela pluralidade de atores com perfis variados no caso (escritórios de advocacia, ONGs nacionais, internacionais, indivíduos, faculdades) e de diferentes países. Além disso, o tramite todo se deu pós reforma de 2000.

     No caso em questão, ONGs chilenas buscavam informações sobre o processo de concessão de áreas florestais para investimentos estrangeiros, especialmente por conta de possíveis impactos ambientais, mas não obtiveram respostas satisfatórias dos órgãos estatais e nem tiveram o direito de acesso à informação reconhecido no judiciário Chileno. Como até então a Corte IDH não havia reconhecido este direito a partir da Convenção Americana, a estratégia usada foi a de reconhecer o direito de acesso à informação a partir da liberdade de expressão (art.13), valendo-se de argumentações como o a de que a jurisprudência já apontava para o reconhecimento e de que a Corte IDH também precisaria reconhecer a obrigação do Estado em prestar informações, dentre outros.

     Em sua decisão a Corte IDH não acolheu todas as pretensões de interpretação mas avançou em pontos quando entendeu que a ‘’garantias judiciais’’ se aplicam também aos órgãos estatais, e isso os obriga a responder de maneira fundamentada, por exemplo, os pedidos de acesso à informação. Em termos de estratégia de impacto social, foram estabelecidas medidas de políticas públicas, como a capacitação de organismo do estado para prestação de informações, além da aprovação de legislação específica sobre o tema.

     Este caso chileno de reconhecimento de um novo direito a partir da jurisprudência da Corte teve a participação de ONGs da Argentina e do Peru, além da apresentação de seis amici curiae, que talvez seja o tipo de ator mais preocupado com  a produção de precedentes a serem utilizados no ambiente doméstico de vários outros Estados.

     A autora prosseguiu com a comunicação do litígio estratégico a partir de um mesmo tema: as leis de anistia. Foram analisadas a formação de precedentes da Corte IDH nos casos Barrios Altos vs Peru; Almonacid Arellano vs. Chile; La Cantuta vs. Peru e ainda a incorporação desses precedentes na Argentina.

     No caso Barrios Altos vs. Peru, após um massacre executado em novembro de 1991 por um grupo paramilitar de membros das forças armadas no país, sob ordens do então presidente Fujimori, uma Comissão foi instaurada pelo Congresso Peruano para averiguação do caso. As investigações cessaram quando este mesmo presidente dissolveu o congresso em Abriu de 1992, e promulgou uma lei que anistiava todos os membros das forças de segurança do Estado. Após a resistência de um juiz de primeira instancia na aplicação, por considera-la inconstitucional, o novo congresso promulgou outra lei, que determinava que a anistia não poderia ser revista judicialmente e que teria aplicação imediata.

     Diante disto, várias ONGs de direitos humanos (domésticas, CEJIL) reagiam à essas leis de anistia e apresentaram denúncia ao sistema interamericano, formando assim o Barrio Alto vs. Peru. Na sentença de mérito, proferida em março de 2001, a Corte DH avaliou a compatibilidade entre as leis de anistia e a Convenção Americana e entendeu que o Peru havia violado direito de garantia judicial ( art. 8.1) e de proteção judicial (art. 25) das vítimas e de seus familiares. Determinou que pela incompatibilidade com a Convenção, as leis de anistia careciam de efeito jurídico e não poderiam ser obstáculo à investigação dos fatos. Além disso, o crime praticado feria direitos inderrogáveis, o que corroborava pela inadmissibilidade das leis.  De acordo com o ex-juiz da Corte IDH, Cançado Trindade, a sentença foi paradigmática por determinar, pela primeira vez, que leis de autoanistia (produzidas pelo mesmo regime que cometeu os crimes anistiados) carecem de efeitos jurídicos. Desta forma foi criado um precedente na matéria, formando um ‘’critério americano sobre as autoanistias’’.

     No Caso Almonacid vs. Chile e La Cantuta vs. Peru, novos elementos argumentativos foram apresentados para a inadmissibilidade das leis de anistia. No primeiro, a argumentação se dá a partir da natureza dos crimes cometidos. Almonacid Arellano foi vítima do governo ditatorial Chileno em 1973 por meio de uma execução extrajudicial.

     Cinco anos depois, foi promulgada a lei que anistiava todas as pessoas participantes de fatos delituosos durante o estado de sítio, bem como as pessoas condenadas por tribunais militares após 11 de setembro de1973. Diante disso o caso foi arquivado pela justiça militar em 1998 sem a punição dos responsáveis.

     Na sentença da Corte IDH, esta se valeu da contextualização política do Chile à época da execução de Almonacid. O padrão sistemático de ações contra a população civil caracterizou o assassinato como um crime contra a humanidade, que à época dos fatos, já era uma norma imperativa de direito internacional, e do qual decorre um dever de investigação e punição dos responsáveis, o que impede a anistia.

     No caso La Cantuta vs. Peru, em que nove estudantes e um professor da Universidade Nacional de Educacion Enrique Guzman (conhecida como La Cantuta) foram detidos em seus dormitórios por membros do exército em Julho de 1992, a sentença de mérito da Corte IDH, além de retomar argumentos de decisões anteriores sobre a violação de jus cogens e sobre a obrigação dos Estados de investigar as violações de diretos humanos e punir os responsáveis, traz à tona uma nova questão.

      Ela entende que haveria, tratando-se desse contexto de violação sistemática de direitos humanos, um dever de cooperação interestatal para erradicar a impunidade. O acesso à justiça seria uma norma imperativa de direito internacional que gera obrigações erga omnes para os Estados de adotar medidas para não deixar essas violações impunes. A obrigação seria tanto de julgar e punir os responsáveis quanto de colaborar com outros estados para esse fim.

     A decisão de 2006 é claramente direcionada à extradição do ex-presidente Fujimori do Chile para o Peru. A Corte Suprema do Chile decidiu então pela extradição em 2007, ano em que Fujimori passa a responder judicialmente no Peru pelas violações cometidas em Barrios Altos e La Cantuta.

     É perceptível portanto que em cada um dos casos agregam novos elementos argumentativos, com o objetivo de construírem uma jurisprudência ampla, com parâmetros de interpretação que estabeleçam efeitos cada vez maiores, além do caso concreto e do Estado.

      Um exemplo de utilização desses precedentes no âmbito doméstico ocorreu na Argentina quando, em 2005, a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade das leis de anistia daquele país. Antes de chegar à corte o caso foi apresentado pelas ‘’Abuelas da Plaza de Mayo em 1978 com o objetivo de restituir Claudia Victoria Poblete, sequestrada com seus pais em 1977, mas foi frustrado pela leu de anistia vigente. Em outubro de 2000 a ONG CELS solicitou a declaração de nulidade daquelas leis. O pedido foi procedente tendo sido levado em consideração o contexto histórico, o direito internacional que justificava a imprescritibilidade e mais importante, os dois pontos levantados pela jurisprudência da Corte IDH: os crimes contra a humanidade e a incompatibilidade com as leis de anistia. Os ministros incorporaram ainda a decisão Barrios Altos, numa ilustração de como é possível a harmonização entre o direito interno e internacional, ou como a interpretação da Convenção Americana, produzida pela Corte IDH, seja utilizada nos tribunais domésticos.

     Antes de tratar do tema da anistia, cabe tratar de casos recentes em que o STF deliberou sobre a incorporação de direito internacional ou de jurisprudência internacional no direito interno – assunto que pauta as discussões tradicionais sobre o direito internacional no direito doméstico. Embora o tenha feito com mais frequência recentemente, a conclusão, adianta-se, é a de que a nossa suprema corte ainda não dialoga de modo coerente e continuado com esses materiais jurídicos, fundamentais para o litígio estratégico transnacional.

     O STF discutiu em um número de ações o nível hierárquico dos tratados internacionais incorporados à ordem doméstica, muitos dos casos envolvendo o conflito entre o texto da Constituição Federal Brasileira de 1988, que permite a prisão do depositário infiel, e o da Convenção Americana, que permite a prisão civil por dívidas apenas em casos de pensão alimentícia. Duas teses majoritárias surgiram no tribunal: a da constitucionalidade e a da supralegalidade entre a Constituição e a Convenção Americana – representadas pelos ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes, respectivamente, tendo a última prevalecido. Com a adoção da interpretação do status infraconstitucional, e supralegal dos tratados internacionais, o STF afastou-se de uma antiga posição consolidada do tribunal, segundo a qual todos os tratados internacionais ocupariam posição hierárquica de legislação ordinária.

     Para além da discussão sobre o reconhecimento da normativa internacional, há também uma questão ainda pouco abordada pelo STF: o reconhecimento da jurisprudência, termo empregado, aqui, em sentido amplo, de organismos internacionais dos quais o Brasil faz parte, como por exemplo a Organização Mundial do Comércio (doravante OMC).

     Um exemplo de tratamento do assunto se deu na decisão da ADPF nº 101, que versou sobre a importação de pneus usados por parte do Brasil para aproveitamento como matéria prima industrial, fato proibido por diversos atos e portarias desde 1991 como garantia de proteção à saúde pública e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Este assunto já havia sido deliberado em duas instâncias internacionais, a da OMC e a do Mercosul. Carmem Lúcia, a ministra relatora, dialoga com a decisão do Mercosul e procura acomodá-la em seu voto.

     Outro exemplo de caso que dialoga com as decisões de organismos jurisdicionais internacionais seria a ação que busca consolidar a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, promulgada após recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o tratamento da violência doméstica contra a mulher no Brasil.

     A ADC º19 foi proposta pela Presidência da República com o objetivo de evitar seu descumprimento por parte de tribunais inferiores – evitando, assim, que o caso seja encaminhado à Corte IDH por descumprimento das recomendações da Comissão.

     Apesar de acolherem as teses mais progressistas em relação à incorporação de legislação internacional no ordenamento brasileiro, e reconhecerem que a Corte IDH já havia decidido pela inviabilidade das leis de anistia, os Ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes adotaram argumentos no sentido de isentar o Brasil do cumprimento de tal determinação internacional. O primeiro, em função de um caráter de “perdão geral” da lei de anistia brasileira, não assumindo o caráter de autoanistia, e o segundo em função da prescritibilidade desses crimes no país, além da instabilidade institucional que uma “revisão” da lei da Anistia poderia causar. É possível identificar, portanto, o emprego de uma argumentação seletiva sobre o acolhimento da jurisprudência internacional por parte desses dois Ministros.

     Na Suprema Corte Argentina, os ministros derivaram do status constitucional da Convenção Interamericana a necessidade de compatibilização dos dois documentos. No entanto, é possível que não seja nem mesmo necessário atrelar o cumprimento das decisões do Sistema Interamericano ao tratamento dado à Convenção em âmbito interno, uma vez que, ratificado o documento, o país se obriga não apenas a respeitar o texto da CADH, mas também a interpretação que ela produz sobre ele. O Estado não poderia deixar de cumprir as determinações do sistema com base em regras internas, sob pena de trazer responsabilidade internacional sobre si.

    independentemente da possibilidade de se obter uma resposta direta do sistema interamericano sobre a “convencionalidade” da Lei de Anistia para o caso brasileiro, os atores sociais que ativam o processo normativo transnacional e que litigam estrategicamente no sistema interamericano devem estar preparados para atuar também no âmbito doméstico, nos espaços institucionais onde o debate está sendo ou poderia ser desenvolvido. Isso porque o uso estratégico do sistema interamericano não está apenas em levar casos concretos para a obtenção de medidas de impacto social para o país, mas está também em abrir espaço no âmbito doméstico para a inserção dos parâmetros de interpretação já produzidos pelo sistema interamericano, incorporando a jurisprudência do sistema interamericano à engrenagem institucional doméstica.

       O judiciário pode atuar, portanto, como uma porta de entrada para tais precedentes internacionais. O STF, mais especificamente, pode ser um fórum propício ao litígio estratégico, uma vez que detém o controle concentrado de constitucionalidade, com efeito erga omnes, e por permitir a participação de atores sociais, como amicus curiae ou proposituras de ações diretas de inconstitucionalidade, para alguns legitimados.

     Embora não se trate do único caso que dialoga materialmente com a jurisprudência do sistema interamericano no judiciário brasileiro, o caso da “revisão” da Lei de Anistia talvez seja aquele em que possa haver a contribuição mais significativa não apenas em termos jurisdicionais, mas sobretudo no que diz respeito ao produtivo compartilhamento de experiências de outros países da América Latina. Na ocasião do julgamento, no entanto, houve uma forte resistência em dialogar com argumentos normativos ou jurisprudenciais de direito comparado ou de direito internacional – e, por maioria de votos, o tribunal decidiu pela constitucionalidade e continuidade da Lei de Anistia.

     A despeito de uma eventual aproximação do uso do direito internacional por parte do STF, nota-se a sua aplicação seletiva, variando de acordo com o tema debatido. Não há hoje um acúmulo jurisprudencial acerca do modo de dialogar com a normativa e a jurisprudência internacionais.

     Na ocasião da votação da ADP nº 153, apenas dois dos sete ministros votantes lançaram mão de um diálogo transnacional – Lewandowski e Celso de Mello. Surpreendentemente, Celso de Mello votou pela improcedência da ação, afastando a aplicabilidade da jurisprudência da Corte IDH em relação à Lei da Anistia brasileira.

     Pouco mais de um ano depois, a Corte IDH publicou sua sentença de mérito sobre o Caso Araguaia, interpretando que a Lei da Anistia brasileira viola as disposições da Convenção Americana e que o país deve promover investigações penais dos responsáveis pelos crimes cometidos durante o regime militar.

     A Corte entendeu que o Estado deveria empreender uma série de medidas para além da indenização e reparação pecuniária das vítimas e familiares, incorrendo em políticas públicas como garantias de não repetição, versando sobre o acesso, sistematização e publicação de documentos em poder do Estado; tipificando o delito de desaparecimento forçado e criando uma Comissão da Verdade.

     Desta forma, a despeito da decisão do STF, o debate sobre a Lei de Anistia no Brasil foi reaberto a partir da sentença da Corte. Até esse ponto, essa discussão tem tendido à neutralização dos efeitos domésticos da sentença da Corte IDH, fazendo com que as instâncias judiciais inferiores possam ser fundamentais para a retomada deste debate jurídico.

2 Responses

  1. Marcio Esser

    Através da resenha realizada, é possível perceber e destacar a grande importância de algumas críticas feitas por Evorah Lusci em sua obra. Quando esta, no capítulo II, tece algumas críticas ao ciclo de vida do litígio estratégico no sistema interamericano, acaba por despertar um pensamento crítico, principalmente a respeito de como a atuação da Corte IDH tem se dado, objetivando solucionar os casos individuais e/ou criar impacto nos tribunais domésticos com seus posicionamentos. Uma das críticas propostas pela autora é, justamente, o desamparo que muitas vítimas acabam se encontrando quando a Corte age de acordo com essa função de resolução de casos individuais voltada à parte coletiva. Por outro lado, penso que nesse mesmo capítulo a autora deixou escapar a oportunidade de fazer um apanhado sobre o que seria o ciclo de vida do litígio estratégico no direito como um todo, deixando no ar esta dúvida a respeito de um conceito ainda tão pouco desbravado. Entretanto, cabe ressaltar que o disposto pelo capítulo II contemplou o que se havia proposto.

  2. Beatriz

    “Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo”, isso se aplica ao processo civil ou apenas quando há repercussão Penal?
    Levando em consideração o contraditório , capacidade da pessoa responder por seu atos e o dever de ouvir as partes, incide em todos os âmbitos.
    Logo, é coerente que a prerrogativa de não produzir prova contra si mesmo seja aplicada também ao processo civil. O processo é um instrumento de resolução de conflitos, julgar de forma justa.

    A parte não é obrigada a depor sobre fato torpe (desonesto) mas não detém o direito de não provar contra si mesmo ?
    Podemos concluir que o próprio processo é uma garantia fundamental, mas deve ser questionado para agir como tal.

    Uma garantia é a preservação de um direito. Um exemplo desse direito não ser totalmente respeitado é o caso das blitz de lei seca, quando a pessoa se recusa a fazer o teste o policial já presume a culpa, fato que contradiz essa garantia de defesa, apesar dele ter essa prerrogativa enfrentará problemas, visto que a própria lei já estabelece que a abstenção já incide na culpa ou o dever de responder a provável culpa com a devida multa.
    A palestra nos fez refletir algumas contradições normativas, como o princípio da inocência ser em parte desonsiderado. A liberdade é a regra, mas ultimamente muitas decisões jurídicas se mostram contrárias.

Leave a Reply

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Clínica IDH

Produção do NIDH-FND Artigos e Livros