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FURLAN E FAMILIARES VS. ARGENTINA (2012): O DANO AO PROJETO DE VIDA

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#pracegover: no centro da imagem temos um rapaz, que é o irmão de Sebastián Furlan,
Claudio Furlan, tendo um microfone na sua frente por estar dando seu depoimento. 
Ao fundo, encontramos algumas bandeiras de países não identificados.

FURLAN E FAMILIARES VS. ARGENTINA (2012):

O DANO AO PROJETO DE VIDA

Isadora Marques Merli [1]
Luiza Lima Rianelli [2]

    Em março de 2011, o caso Sebastián Furlan e família contra a República Argentina foi submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em consonância com os artigos 51 e 61 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Sendo sua petição inicial apresentada à CIDH em julho do mesmo ano por Danilo Furlan, em representação ao seu filho e vítima, Sebastián.

     A importância do caso, em parte, advém de ser a primeira vez que se utilizou o trabalho de Defensores Públicos Interamericanos, incumbidos de prestar a orientação jurídica e a defesa da vítima. Outro ponto particularmente interessante foi a sentença da Corte IDH que condenou o Estado argentino por privar a família de Furlan da possibilidade de criar um projeto de vida próprio, autônomo e independente, o que considerou como um dano imaterial incalculável.

     O menino Sebastián Claus Furlan, vivia na presente data dos fatos na província de Ciudadela Norte. Sebastián, que tinha 14 anos na época, vivia com seu pai, Danilo Furlan, sua mãe, Susana Fernández, e seus irmãos, Sabina e Claudio. Ciudadela Norte é caracterizada como uma região predominantemente de classe baixa e classe média baixa, próxima a locais marginalizados e perigosos. A família Furlan tinha uma renda proporcional àquela localidade.

     Em 21 de dezembro de 1988, o jovem Sebastián entrou em um prédio abandonado de propriedade do Exército Argentino próximo à sua casa que antes funcionava como circuito de treinamento militar para brincar; uma vez que, o imóvel era comumente utilizado por outras crianças como local de brincadeiras diversas. Lá haviam obstáculos construídos e ruínas de instalações como uma pista de infantaria. Tal prédio não possuía quaisquer barreiras que impedissem a entrada. Assim, Sebastián tentou se pendurar em uma viga de aproximadamente 50 quilos que caiu e bateu em sua cabeça, deixando-o inconsciente instantaneamente.

     Sebastián foi levado ao Hospital Nacional Professor Alejandro Posadas com traumatismo encéfalo craniano e estado de coma grau II-III, além de uma fratura no osso parietal direito. Já no hospital, o menino foi operado por conta de um acúmulo sanguíneo entre a membrana que reveste o cérebro (dura-máter) e o crânio. Após a cirurgia, permaneceu em coma até o dia 28 de dezembro e estado vegetativo até 18 de janeiro de 1989.

     Durante seu período em terapia intensiva, Furlan passou por duas tomografias computadorizadas que apontaram concussão cerebral e de tronco, além de retardamento. Sebastián recebeu alta em 23 de janeiro de 1989, saindo com dificuldades na fala e uso dos membros. Baseado nos diagnósticos recebidos no hospital, Furlan permaneceu em tratamento ambulatorial.

     Em consequência, o traumatismo e o coma em que Furlan permaneceu resultaram em sequelas irreversíveis com manifestações obsessivas compulsivas, deterioração de personalidade, grau de incapacidade psíquica e irreversíveis transtornos cognitivos e motores pela desordem pós-traumática e reação neurológica anormal.

     Assim, em agosto de 1989, Sebastián tentou se suicidar ao se atirar do segundo andar de um edifício nas proximidades de sua casa. Essa tentativa acarretou uma segunda internação no mesmo hospital, dessa vez para observação de um quadro de depressão severa.

     Furlan há tempos apresentava crises de choro, desejo de abandonar a escola e pensamentos suicidas, além disso, foi notificada que essa era a segunda tentativa de suicídio de Sebastián Furlan, que anteriormente havia se ferido propositalmente. Durante a internação foram diagnosticados diversos traumatismos com perdas momentâneas de consciência, náuseas, tálamo conservado, ataxia, alterações de linguagem, dislalia e sinais de meningite.

      Antes, Sebastián era um estudante regular em uma escola técnica em Ciudadela. Como atividades extracurriculares praticava Karatê, basquete e nadava em um clube em Ciudadela. Após o acidente, foi obrigado a interromper as atividades esportivas.

     Mesmo que Furlan tenha conseguido retornar à escola em 1990, apresentou significativas dificuldades na fala, de controle motor, além de severas mudanças de comportamento que geraram obstáculos aos professores em seu aprendizado e dos outros alunos.

     Como comprovação dessas alterações, a Escola de Educação Técnica nº 4, dentro de um processo por perdas e danos descreve a conduta de Furlan anterior e posterior ao acidente. Com relação ao pós-acidente se afirmam situações acontecidas em abril de 1990 relativas à problemas disciplinares como atrasos, conduta agressiva, falta de respeito, assédio às alunas e violação ao pudor.

     Nesse contexto, em 18 de dezembro de 1990, o pai de Sebastián Claus Furlan, Danilo Furlan, entrou com uma ação no foro civil – 9ºJuízo Nacional Civil e Comercial Federal – contra o Estado da Argentina, com objetivo de obter indenização pelos danos do acidente de Sebastián.

     Em  16  de  abril  de  1991,  Danilo adicionou à  demanda  inicial, o pedido de  indenização por:  “i)  “dano  moral  pelos  sofrimentos físicos e psíquicos como consequência do acidente”; ii) “sequelas pelas lesões cerebrais  sofridas  e  que  lhe  impedirão  no  futuro  de  empreender  um  curso  superior  e  de  concluir o curso secundário”; iii) “sequelas pelas lesões físicas sofridas que lhe impediram e  lhe  impedirão  no  futuro  de  ter  uma  vida  social  normal”,  e  iv)  “lesões  cerebrais  e  físicas  recorrentes,  que  se  manifestam  em  reiteradas  dores  de  cabeça,  perda  da  memória  e  enrijecimento  de  membros”[3].

     Em 1999, Sebastián passou por duas perícias médicas para ajudar a corroborar as demandas que seu pai fazia como autor do processo. O perito médico-psicológico apresentou um laudo que concluía que o estado de Furlán correspondia a uma “ desordem mental pós-traumática grau II, com uma incapacidade de vinte por cento e uma reação vivencial anormal neurótica, com manifestação obsessiva compulsiva”. Já o perito neurológico teve resultados ainda mais desanimadora “ desordem mental orgânica pós-traumática grau IV, com incapacidade parcial e permanente de setenta por cento”.

     Mediante sentença de primeira instância, emitida em 7 de setembro de 2000, o juízo decidiu a favor do autor da ação, Danilo Furlán, estabelecendo que o dano ocasionado, tinha se dado por negligência do Estado, em função das condições de abandono da área, sem nenhum tipo de cerca perimetral que impedisse a entrada.

     No entanto, o juiz considerou que Sebastián Furlán tinha responsabilidade, por ter entrado no local por sua própria vontade e consciência dos riscos. Em virtude disso, o juízo atribui setenta por cento de culpa ao Estado e trinta por cento ao Sebastián.  A sentença de segunda instância, emitida em 23 de novembro de 2000 pela I Sala da Câmara Nacional Civil e Comercial Federal confirmou a sentença.

     Em 2 de março de 2006, a CIDH aprovou o Relatório de Admissibilidade e, posteriormente, a CIDH considerou que o estado não havia dado cumprimento às recomendações do Relatório de Mérito, de maneira que decidiu submeter o caso à jurisdição da Corte IDH. Nesse sentido, a principal demanda da parte autora é a responsabilidade internacional do Estado argentino pela falta de resposta oportuna por parte das autoridades judiciais internas, que teriam incorrido em demora excessiva na resolução da ação civil, de cuja resposta dependia o tratamento médico da vítima, em sua condição de criança com deficiência.

     Há, então, a solicitação à Corte para que se declare como violados os artigos 8.1 (garantias judiciais) e 25.1 (proteção judicial), em relação ao artigo 1.1 (obrigação de respeitar o direito) da Convenção Americana, em detrimento de Sebastián e Danilo Furlán.

     Em abril de 2011, o senhor Danilo manifestou sua necessidade de ser representado perante o Tribunal, por um Defensor Interamericano que fosse designado para ele. A Associação Interamericana de Defensorias Públicas é uma entidade privada, sem fins lucrativos, apolítica, não religiosa, social e cultural integrada por Defensorias Públicas e associações de defensores públicos de cada um dos países que integram a OEA. Particularmente interessante, por ter sido o primeiro caso da Corte a utilizar essa instituição.

     A sentença foi proferida pela Corte IDH na data de 31 de agosto de 2012, argumentando que todas as violações cometidas, foram em detrimento de uma criança e, posteriormente, um adulto com deficiência. Pela primeira vez em sua jurisprudência, houve uma referência à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e à Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência, com a finalidade de ressaltar o modelo social de deficiência.

       Nesse sentido, vale comentar que a doutrina especializada costuma dividir em três grandes períodos, que revelam três modelos distintos de olhar a pessoa com deficiência. O modelo de prescindência vigorou durante a antiguidade clássica e idade média – reaparecendo durante regimes totalitários, como o nazismo- e via a deficiência como uma falha no campo moral e religioso[4].

       Nesse modelo, o deficiente era visto como alguém inútil, que não tinha nada a contribuir com a sociedade, ou seja, era um fardo social. A consequência dessa linha de pensamento era a exclusão dos indivíduos deficientes. Por outro lado, após as duas grandes guerras outro modelo começou a se destacar.

      O modelo médico surgiu como resultado da grande quantidade de feridos da guerra e trazia consigo um olhar para a deficiência do ponto de vista médico, tendo como efeito a busca pela cura e a reabilitação. Dessa maneira, o foco era “normalizar” esses corpos, eliminando as suas limitações. A partir de críticas feitas dos indivíduos com deficiência sobre essas abordagens biomédica, começa a se desenvolver o modelo social.

       Com a chegada do modelo social, a deficiência não é mais abordada unicamente no campo médico, em vez disso, conceitua-se deficiência a partir da combinação entre as limitações corporais do sujeito e a capacidade da sociedade em que ele se encontra de incluí-lo ou excluí-lo.

   Ao explicitar qual modelo usaria, a Corte deixou claro que era o modelo social, que tem como principal característica o entendimento que a deficiência é uma união entre uma lesão de longo prazo e uma série de barreiras estabelecidas socialmente.

     Dito isso, as medidas de reparação não poderiam não podiam se concentrar exclusivamente na reabilitação do tipo médico, mas incluir uma reabilitação que permita que o sujeito possa enfrentar os obstáculos ou limitações impostas.

     O Tribunal constatou que o dano produzido a Sebastián pela demora no processo o impediu que tivesse acesso aos tratamentos médicos e psicológicos que poderiam ter tido um impacto positivo na sua vida, o que foi evidenciado nos laudos médicos apresentados no processo.

     Portanto, o Tribunal considera necessário ordenar a obrigação do Estado de oferecer gratuitamente, através de seus serviços de saúde especializados, e de forma imediata, adequada e efetiva, o tratamento médico, psicológico e psiquiátrico às vítimas, mediante prévio consentimento informado, incluindo a provisão gratuita dos medicamentos que eventualmente sejam requeridos, levando em consideração os sofrimentos de cada um deles.

     Por fim, a Corte indicou o dano ao “ projeto de vida”, que implica a perda ou o grave prejuízo de oportunidades de desenvolvimento pessoal de forma irreparável ou muito dificilmente reparável. A Corte IDH considera necessário que seja oferecido à Sebastián acesso a serviços e programas de habilitação e reabilitação, que se baseiam em uma avaliação multidisciplinar das necessidades e capacidades da pessoa.

     Além disso, como garantia de não repetição, a Argentina deveria adotar medidas necessárias para assegurar que no momento em que um indivíduo é diagnosticado com graves problemas ou sequelas relacionadas com deficiência, seja entregue à pessoa ou a algum familiar uma cartela que resuma de forma sintética, clara e acessível os benefícios que advém dos direitos, assim como as instituições que podem prestar ajuda.

     Diante do caso, é possível perceber que as dificuldades no desenvolvimento de crianças com deficiência, principalmente no que tange o ambiente escolar, se dá por uma série de fatores que corroboram para alterações no comportamento. Ademais, a negligência social e o isolamento contribuem para um atraso no desenvolvimento daquela criança enquanto cidadão parte da sociedade.

     No âmbito jurídico, o estabelecimento de um modelo social que compreende a deficiência como a união da limitação corporal com a exclusão social, colaborou de forma determinante na introdução das questões tangentes às pessoas com deficiência dentro da discussão internacional, em consonância com o princípio da dignidade humana e um catálogo de direitos fundamentais.

     Assim, no que compreende os direitos humanos dos deficientes, em especial das crianças, vem sendo debatida a conscientização e sensibilização, além de políticas sociais e econômicas em “lato sensu para a proteção e garantia efetiva dos direitos correlatos e stricto sensu para programas de inclusão social (educacional) da pessoa portadora de deficiência”[5].

     Logo, dentro do caso Furlan e familiares vs Argentina, é perceptível a influência do âmbito escolar na vida de Sebastián, que, por ter frequentado uma escola não preparada para suas necessidades, apresentou dificuldades em ser incluído, o que gerou pensamentos de evasão escolar e um comportamento pouco aceitável para com os outros colegas.

     Demonstrando, assim, um ponto fundamental para a criança, particularmente a com deficiência, de que políticas sociais, acompanhamento e incentivo à sua vida escolar são uma questão primordial no modelo de inclusão, uma vez que a escola é o primeiro ambiente de socialização e aprendizado que traz o contato com a diversidade, tendo uma relevância imprescindível na formação do indivíduo.

     Ademais, o caso traz outro ponto de conscientização que são as atividades extras que favorecem o aperfeiçoamento das habilidades e o senso de inclusão, como esportes e outras formas de lazer, infelizmente, retiradas do cotidiano de Furlán, podendo ter trazido significativas melhoras no seu quadro.


COMO CITAR

MERLI, Isadora Marques; RIANELLI, Luiza Lima. Furlan e Familiares vs. Argentina (2012): O dano imaterial a um projeto de vida. Casoteca do NIDH – UFRJ Disponível em:https://nidh.com.br/furlan

 


LEIA MAIS

MERLI, Isadora Marques; RIANELLI, Luiza Lima. Gonzales Lluy vs. Equador (2015): A equiparação da contaminação pelo HIV a contração de uma deficiência. Casoteca do NIDH – UFRJ. Disponível em: https://nidh.com.br/gonzaleslluy

MERLI, Isadora Marques; RIANELLI, Luiza Lima. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil (1999): O modelo hospitalocêntrico nos anos 90 e o assassinato de uma pessoa com deficiência. Casoteca do NIDH – UFRJ. Disponível em: https://nidh.com.br/damiao


[1] Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Monitora de Direito Constitucional I. Pesquisadora da Casoteca do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da UFRJ. E-mail: [email protected]

[2] Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Monitora de Direito Constitucional I. Pesquisadora da Casoteca do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da UFRJ. E-mail: luizalrianelli@gmail.com

[3] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Furlan e familiares vs. Argentina: Sentença de 31 de agosto de 2012. Capítulo VI, Fatos, parágrafo 80.

[4] ALBAINE, Flávia. O conceito de pessoa com deficiência e a proposta de um diálogo de cortes. 2020, P.5.

[5] BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula; LANES, Rodrigo de Brito. O direito à educação inclusiva das crianças portadoras de deficiência. 2011, P. 156. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4558252

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