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GONZALES LLUY VS. EQUADOR (2015): A EQUIPARAÇÃO DO HIV À DEFICIÊNCIA

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#pracegover: fotografia com o fundo preto em que no centro, iluminada, 
está Tália Gonzales Lluy- mulher que possui cabelos e olhos castanhos escuro- 
que está trajando uma camisa de manga comprida bege, com um chapéu e óculos. 
Ela está falando em um microfone, uma vez que, é um registro da audiência pública do caso.

GONZALES LLUY VS. EQUADOR (2015):

A EQUIPARAÇÃO DO HIV À DEFICIÊNCIA

Isadora Marques Merli [1]

Luiza Lima Rianelli [2]

     Em 18 de março de 2014, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) submeteu à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em acordo com os artigos 51 (recomendações pertinentes em relação ao caso, dada pela Comissão IDH ao Estado) e 61 (Comissão IDH submete caso a Corte IDH) da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e o artigo 35 do Regulamento da Corte IDH, o caso TGGL e família contra Equador.

     Nesse sentido, tal caso se relaciona à responsabilidade internacional do Equador pela violação aos direitos de integridade pessoal e vida digna da menina Talía Gabriela Gonzales Lluy. O fato se deu em decorrência do contágio pelo vírus da AIDS, causado por uma transfusão de sangue que não passou por testagem, quando Talía tinha três anos de idade. Em discordância com o pensamento da CIDH, o Estado do Equador não prestou seu dever de garantia, especificamente no que diz respeito a fiscalização das entidades privadas prestadoras de serviços de saúde.

     A CIDH reforçou que a escassez de respostas eficientes pelo Estado, em específico no que diz respeito a ausência de atendimento médico especializado, foi um agravante ao exercício dos direitos de Talía após a contaminação; também concluiu que a respeito do processo penal interno, não foram cumpridas as diretrizes mínimas no âmbito da diligência no oferecimento de um recurso efetivo à Talía e sua família. Sendo assim, o Equador não cumpriu seu dever enquanto Estado para assegurar proteção específica à criança.

     Em 1998, aos 3 anos de idade, após uma hemorragia nasal decorrente de um problema de saúde, Tália Gabriela Gonzales Lluy foi submetida a uma transfusão de sangue em uma clínica privada de saúde, onde, por não terem sido observados os cuidados médicos necessários, acabou sendo contaminada pelo vírus HIV. Desde então, a menina e sua família lutam pela responsabilização criminal e civil dos responsáveis por coleta e análise das amostras, no entanto, a família não obteve êxito quanto a tais pleitos.

     Nesse contexto, o processo interno se iniciou no mesmo ano, 1998, sete anos depois, em 2005, finalmente foi declarada a prescrição da pretensão punitiva quanto à responsabilização penal. Em sequência, em 2006, foi declarada a “nulidade de todo o procedimento civil sob o fundamento de que a indenização civil derivada de infração criminal dependeria de prévia sentença penal condenatória, o que inexistia”[3].

     Ao mesmo tempo, barreiras sociais foram levantadas. A menina Talía, frequentou a escola pública por dois meses e a partir de então, foi impedida por ordem da diretoria, sob a alegação de proteção dos demais, que tinham risco de contaminação.

     Diante dessa situação, a família de Talía novamente procurou o Judiciário, que negou sua pretensão sob o argumento de que, em caso de um conflito de interesses, prevalecia o interesse dos alunos em prevenir um suposto risco de contaminação, sob o fundamento da natureza coletiva.  Decidiu-se ainda, que nada impediria o ensino de Talía, desde que o mesmo ocorresse de forma particular e a distância.

     Não obstante, Talía obteve dificuldade no acesso dos estabelecimentos de saúde, tanto nos primeiros exames hematológicos quanto no recebimento dos medicamentos antirretrovirais, essa dificuldade foi agravada pela sua condição de pobreza. Tanto ela quanto os seus familiares foram vítimas de preconceito e discriminação pela condição de Talía, obrigando eles a se mudarem e viverem em locais com que não se identificavam, em condições precárias. A matriarca da família, Teresa Lluy, chegou a perder empregos, por conta da discriminação em relação a condição da sua filha.

     Diante desse cenário, a CIDH sentenciou que houve violação aos direitos à vida e à integridade pessoal de Talía, relacionados ao seu quadro de saúde, uma vez causados pela contaminação, em virtude da negligência estatal em seu papel de fiscalização das instituições privadas, principalmente, de cunho hospitalar, garantindo a segurança nos procedimentos médicos para com os cidadãos equatorianos, bem como a dificuldade posterior de acesso aos procedimentos médicos necessários e medicamentos antirretrovirais, além da ausência de prevenção, tratamento, atenção e apoio ao que se refere ao HIV.

     Também sentenciou a violação ao direito à integridade pessoal de sua família, que sofreu discriminação e estigma, por onde quer que passasse, fato que os fez se mudar incontáveis vezes, uma vez que eram deixados ao relento quando descoberta a condição de sua filha.

     Não obstante, sentenciou a violação ao direito à educação, que vai se dar através da violação à não discriminação e ao superior interesse da criança, pois ao colocar numa balança o interesse coletivo das demais crianças versus o interesse de Talía, a escola e o Estado do Equador, demonstraram verdadeiro desconhecimento acerca do HIV, ocasionando discriminação e barreiras desnecessárias à educação da menina, por conta de uma série de riscos especulativos e infundados e a violação aos direitos ao acesso à Justiça e à duração razoável do processo.

     O caso se torna ainda mais paradigmático, quando se atenta para a decisão que, de modo inovador, reconhece que – para além da condição de mulher, criança e sua situação de pobreza- Talía era vulnerável enquanto pessoa com deficiência, em decorrência do diagnóstico de HIV.

     Quanto ao patamar das restituições, os representantes alegaram que a indenização para cada vítima não deveria ser de valor menor que US$ 100.000,00 (cem mil dólares dos Estados Unidos da América) e que os direitos violados não poderiam ser restituídos, uma vez que a violação se perpetuou em todos os momentos das vidas das vítimas e contextos sociais em que estavam inseridos. Logo, não é possível recobrar as condições prévias às violações e contágio de Talía. Assim, a Corte deveria valorar esse pedido dos representantes baseando-se na indenização compensatória por dano imaterial.

     Quantos às medidas de reabilitação, a CIDH por meio de recomendação, determinou que o tratamento especializado de Talía deveria ser promovido. Os representantes entraram com requerimento ao Ministério de Saúde para que Talía recebesse todo o tratamento necessário incluindo os melhores medicamentos e um atendimento de qualidade e digno.

     Ademais, foi solicitado um “plano de contingência”, em caso de qualquer situação que poderia causar a interrupção nos serviços, como a possível troca de autoridades. Não obstante, dentre as petições de alegações finais, foi apontada a necessidade de Talía e sua família receberem terapia ao menos três vezes ao mês por no mínimo o período de 8 meses, com avaliação posterior e, possível prolongamento.

     Em consonância, a Corte dispõe, em um prazo de seis meses a partir da notificação da Sentença, para que o Estado publique: “a) o resumo oficial da presente Sentença elaborado pela Corte, por uma somente vez, no diário oficial; b) o resumo oficial da presente Sentença, por uma somente vez, em um diário de ampla circulação nacional, e c) a presente Sentença em sua integridade, disponível ao menos por um período de um ano, em um site web oficial de carácter nacional, de forma acessível ao público.”[4].

     Nesse contexto, o Estado, em audiência pública apresentou a alegação de que em 2013, Talía conseguiu uma vaga em uma universidade pública (Universidade de Cuenca) no curso de Design, que não concluiu por complicações em sua saúde advindas das atividades na carreira escolhida; posteriormente ingressou em 2015 no curso de Psicologia Social. Assim, a Comissão fez uma solicitação no Relatório de Mérito que o Estado forneça, em concordância com Talía, “a educação fundamental, superior e universitária, de forma gratuita”.

     Em momento seguinte, dentre as observações finais, foi destacado o oferecimento relativo a uma possível bolsa de excelência. Assim, a Corte dispôs que o Estado promova à Talía Gonzales Lluy uma bolsa para o prosseguimento de seus estudos dentro do ambiente universitário sem estar condicionada às classificações tradicionais para uma bolsa de excelência. Sua bolsa deve cobrir todas as despesas até a conclusão de seus estudos. Essa bolsa deverá ser outorgada pelo Estado para que Talía realize uma pós-graduação em qualquer instituição universitária em que seja aceita em qualquer país do mundo, independente de desempenho acadêmico na universidade.

     Para uma melhor análise e entendimento do caso, é necessária uma breve explicação em relação aos diferentes modelos de tratamento dispensado aos deficientes e, prioritariamente, a compreensão do modelo social, que afirma sua prevalência nos dias atuais[5].

     Durante a Antiguidade clássica e reaparecendo em momentos de regimes totalitários- nazismo e stalinismo, há uma noção do deficiente como pessoa dispensável, que nada agrega a sociedade. Mais do que isso, que a deficiência, na verdade, está relacionada a uma falha moral ou religiosa dos pais do indivíduo. Essa concepção é nomeada como “modelo de prescindência”.

     Na década de 40 e 50, após o término das duas grandes guerras, em que muitos sujeitos perderam as suas vidas e tantos outros sofreram mutilações e problemas psíquicos para serem levados durante a sua existência, insurge o modelo médico ou reabilitador, que está centrado na medicina e tem como objetivo a cura ou reabilitação do indivíduo, ou seja, busca curar ou reabilitar psíquica, física ou sensorialmente para alcançar o padrão de normalidade estético e existencial preestabelecido e dito como “normal”.

     Dessa forma, todo o peso cai sobre os ombros dos deficientes, que precisam se adequar aos moldes sociais para serem aceitos. Sofrendo diversas e contundentes críticas dos deficientes, o modelo médico passa a ser lentamente substituído pelo modelo social, adotado durante a sentença pela Corte IDH, que demonstra que é o contexto social que gera a exclusão.

      A partir desse modelo, compreende-se que a deficiência é uma junção das limitações corporais com a incapacidade social de incluir. Dessa maneira, a responsabilidade pelas desvantagens dos deficientes se dá na falta de adequação do todo social perante àquela limitação.

      Assim, a carga passa a ser distribuída de forma bem mais equiparável, uma vez que, o contexto social passa a ser culpabilizado pela estigmatização do deficiente. Materializa-se a ideia de igualdade inerente ao ser humano a ponto de suportar a diversidade e as diferenças entre esses seres humanos e a ideia de autovalorização, independentemente de sua utilidade no meio social.

     No caso Gonzales Lluy e outros versus Equador, a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou que o diagnóstico de HIV, quando combinado com barreiras socioeconômicas que impeçam a plena inclusão social da pessoa no meio social, pode ser considerado pauta de deficiência, por se enquadrar na necessidade de proteção diferenciada, tendo em vista a plena efetivação da igualdade material e do direito à não discriminação. A partir dessa sentença, demonstra-se que a definição de deficiência não é uma tarefa fácil. O conceito técnico é permeável aos obstáculos que podem vir a ser encontrados.

 


COMO CITAR

MERLI, Isadora Marques; RIANELLI, Luiza Lima. Gonzales Lluy vs. Equador (2015): A equiparação da contaminação pelo HIV a contração de uma deficiência.  Casoteca do NIDH – UFRJ.Disponível em: https://nidh.com.br/gonzaleslluy


LEIA MAIS

MERLI, Isadora Marques; RIANELLI, Luiza Lima. Furlan e Familiares vs. Argentina (2012): O dano ao projeto de vida.  Casoteca do NIDH – UFRJ. Disponível em:https://nidh.com.br/furlan

MERLI, Isadora Marques; RIANELLI, Luiza Lima. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil (2006): O assassinato de um deficiente e o  modelo hospitalocêntrico. Casoteca do NIDH – UFRJ. Disponível em: Disponível em: https://nidh.com.br/damiao.

 


[1] Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Monitora de Direito Constitucional I. Pesquisadora da Casoteca do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da UFRJ. E-mail: [email protected]

[2] Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Monitora de Direito Constitucional I. Pesquisadora da Casoteca do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da UFRJ. E-mail: [email protected]

[3] CARVALHO DE ARAUJO CUNHA, Beatriz. Caso Gonzales Lluy e outros vs. Equador: Estigmatização e permeabilidade do conceito de deficiência. P. 137. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r39109.pdf

[4] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gonzales Lluy e outros vs. Equador: 1º Sentença de 1 de setembro de 2015. 1 de setembro de 2015. Capítulo XII, Reparações, parágrafo 364.

[5] ALBAINE, Flávia. O conceito de pessoa com deficiência e a proposta de um diálogo de cortes. 2020, P.5.

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