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IVCHER BRONSTEIN VS. PERU (2001): DENÚNCIA DA CADH E LIBERDADE DE EXPRESSÃO

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IVCHER BRONSTEIN VS. PERU (2001): Denúncia da CADH e liberdade de expressão

Tayara Causanilhas[1]

     O Caso Ivcher Bronstein vs. Peru, decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em 2001, interposto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 1999, tem, em seu cerne, questões como as garantias judiciais, a liberdade de pensamento e expressão, o direito à nacionalidade, o direito à propriedade privada e a proteção judicial – respectivamente os arts. 8, 13, 20, 21 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Todos são correlacionados com a obrigação de respeitar os direitos da convenção, positivada em seu artigo 1(1).

     No que tange à análise proposta, avalia-se a privação do direito à liberdade de expressão pelo Estado do Peru em detrimento do Sr. Ivcher Bronstein, peruano por naturalização, acionista majoritário, diretor e presidente do Conselho de Administração do Canal 2 da televisão peruana, com o intuito de limitá-lo em suas denúncias retumbantes sobre violações de direitos humanos e corrupção, feitas por meio de seu canal.

     À época dos fatos, vigorava no Estado peruano a ditadura de Alberto Fujimori, iniciada em abril de 1992 com um “autogolpe”, data marcante, pois, assim, iniciaram-se as intervenções em todos os meios de comunicação por elementos das Forças Armadas. Entende-se, portanto, o exercício de censura direta, para que os meios de comunicação estivessem afinados com os objetivos do novo Governo de Reconstrução Nacional e que, no entanto, afastava o Estado das garantias dos direitos fundamentais da CADH – distanciando, inclusive, o povo do pleno exercício democrático.

     O interesse no controle dos meios televisivos era notório, principalmente, supõe-se, pela extensão do alcance da notícia por esse veículo de comunicação. Para a efetivação do controle, utilizavam-se, a priori, mecanismos econômicos contra as empresas, como o maior rigor na parte tributária das empresas que não se sujeitavam completamente aos ideais do governo. Eram práticas sistemáticas. No plano do golpe previa-se a coordenação “com os responsáveis, empresários e promotores dos meios de comunicação, a autocensura e o marco de ação que lhes seria permitido nesta conjuntura”. O garantem que pensamentos, opiniões e denúncias cheguem à população – é, sobretudo, poder democrático cujo cerceamento encarece a vida dos que estão sujeitos ao governo autoritário que os calou.

     Baruch Ivcher Bronstein, vítima direta do caso, israelense, inicia os trâmites para obter sua nacionalidade peruana em 1983, completando-os em 1984. Em 1985 adquire uma pequena participação no Canal 2 no qual, com sucesso, acaba, em 1992, por tornar-se sócio majoritário. O canal, bem sucedido, tinha grande audiência.

     Em meados de 1996, criou-se uma unidade de investigação, estruturando o programa Contrapunto, cujo principal objetivo era realizar denúncias às corrupções e graves violações de direitos humanos no Estado do Peru. A audiência era notória. Denunciou, publicando algumas gravações, a relação comercial entre militares e traficantes de drogas, fato que gerou consequências – como a retirada de tanques que protegiam o Canal de atentados terroristas, por exemplo. No dia seguinte, a Marinha de Guerra do Peru desmentiu essas informações por meio de um comunicado. Foram várias as vezes em que Contrapunto fez reportagens em que se evidenciava a corrupção – sendo investigações que feriam diretamente as Forças Armadas e o governo.

     As reações ao programa e às notícias prestadas à população foram, pelo regime, diversas. Houve, em um primeiro momento, intervenção judicial e policial no Canal 2 em setembro de 1997, comprovada pelo testemunho de Luis Carlos Antonio Iberico Núñez; além disso, a constante perturbação do Sr. Ivcher, com almoços em que era coagido a aceitar propostas para que cessasse suas atividades e ameaças anônimas. O uso de intimidação também, por diversas vezes, acontecera e, por fim, manchetes falsas, patrocinadas pelo governo, caluniosas e difamatórias foram propagadas a seu respeito.

     O relatório da Corte IDH afirma: “como consequência das reportagens transmitidas no programa Contrapunto, o senhor Ivcher foi objeto de ações intimidatórias, entre as quais se indicam: visita de membros da Direção Nacional da Polícia Fiscal e de outras pessoas aos escritórios do Canal 2 para sugerir que mudasse a linha informativa; voos de supostos helicópteros do Exército sobre as instalações de sua fábrica Produtos Paraíso do Peru; e abertura de um processo da Direção Nacional de Polícia Fiscal, contra sua pessoa, em 23 de maio de 1997; em 23 de maio de 1997, o Comando Conjunto das Forças Armadas emitiu o comunicado oficial n. 002-97-CCFFAA, em que denunciava o senhor Ivcher por levar a cabo uma campanha difamatória destinada a desprestigiar as Forças Armadas […]”, dentre outros ocorridos.

     A tentativa de solução amistosa perante a CIDH foi frustrada pelo Estado, que entendeu a denúncia como inadmissível. As denúncias seriam da privação do senhor Ivcher arbitrariamente de sua nacionalidade peruana (em contravenção ao estabelecido no artigo 20(3) da Convenção), como um meio para suprimir sua liberdade de expressão (consagrada no artigo 13 da Convenção), e violou também seu direito de propriedade (artigo 21 da Convenção), e seus direitos ao devido processo (artigo 8.1 da Convenção) e a um recurso simples e rápido perante um juiz ou tribunal competente (artigo 25 da Convenção) – de encontro à obrigação genérica do Estado peruano de respeitar os direitos e liberdades de todos os indivíduos dentro de sua jurisdição, emergente do artigo 1.1 da Convenção Americana. Embora frustrada a tentativa de solução amistosa do conflito, a CIDH faz recomendações ao Estado, que não as cumpre.

     A postura do Estado baseia-se, tão somente, na suposta “retirada” da competência da Corte IDH, em 9 de julho de 1999 e a devolução da demanda pela dada ruptura. Para a Comissão, a retirada da competência não produz efeito algum sobre o exercício da competência do Tribunal no caso; além disso, em matéria de Direito Internacional, especialmente no que tange a um tratado multilateral, o ato unilateral de um Estado não pode privar um Tribunal Internacional da competência que assume previamente – como consagra a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT), em seu artigo 26.

     Ademais, a possibilidade de retirar a declaração de reconhecimento da competência contenciosa da Corte não está prevista na Convenção Americana, sendo, inclusive, incompatível com o texto em seus artigos 1 e 2 e, por isso, carece de fundamento jurídico.

     A Corte IDH, em setembro de 1999, proferiu sentença no sentido de que seria, sim, competente para conhecer do presente caso; a postura do Estado do Peru é inadmissível; o caso, portanto, continuaria a ser julgado. Considera-se, ainda, para o mérito do julgamento, as sucessivas omissões e ausências do Estado. Para a Corte IDH, o não comparecimento no processo não acarreta quaisquer efeitos, uma vez que o comparecimento das partes é um ônus processual, não um dever jurídico. Assim, embora com prejuízo dos julgadores, o processo é finalizado com o impulso ex officio.

     Em relação à declaração do Sr. Ivcher Bronstein, a Corte considera que por tratar-se da suposta vítima e ter um interesse direto no presente caso, suas manifestações não podem ser avaliadas isoladamente, somente dentro do conjunto das provas do processo. Entretanto, deve-se considerar que as manifestações do Sr. Ivcher têm valor especial, na medida em que podem proporcionar maior informação sobre certos fatos e supostas violações cometidas contra ele.

     A Corte IDH, ao julgar o caso, explora os argumentos e as provas levados pela CIDH, embora careça da defesa peruana. Quanto ao conteúdo do direito à liberdade de pensamento e de expressão, expresso no artigo 13 da CADH, retoma-se o entendimento já explícito no Caso Olmedo Bustos vs. Chile. A proteção da liberdade de pensamento e expressão prevista pela CADH não é restrita ao direito de expressar o pensamento próprio, mas também abrange o direito e a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza – de modo a impor à liberdade de pensamento e expressão uma dupla dimensão de análise.

     A liberdade de expressão teria, genericamente, duas dimensões, a saber, a individual e a social. Enquanto a individual liga-se à manifestação do pensamento, representando um direito de cada indivíduo, a social expressa o direito coletivo a receber qualquer informação e a conhecer a expressão do pensamento alheio. Ambas as dimensões devem ser concomitantes e suas garantias, simultâneas.

     No âmbito individual, a liberdade de expressão não se esgota no reconhecimento teórico do direito de expressar-se, por qual quer que seja o meio de comunicação, mas, igualmente, compreende o direito a utilizar os meios apropriados para difundir a informação e fazê-la chegar ao maior número de destinatários. Nesse sentido, a expressão e a difusão do pensamento e da informação são indivisíveis, e a restrição da divulgação representa um limite ao direito de expressar-se livremente.

     Com respeito à segunda dimensão, a social, entende-se a liberdade de expressão como meio para o intercâmbio de ideias e informações entre os indivíduos – um meio, sobretudo, democrático. Implica, sobretudo, no direito de conhecer as informações, notícias, relatos e opiniões, por exemplo, o que, para o cidadão comum, é de profunda relevância – não só como meio de vias democráticas, mas também para o direito de expressar-se, garantido pela primeira dimensão.

     A Corte IDH destacou a importância desse direito, já consagrado, destacando a conjuntura do caso. A análise dos meios de comunicação é, frequentemente, a de uma sociedade democrática, sobretudo quando verdadeiros os instrumentos da liberdade de expressão. De forma contrária ao pretendido pelo Estado do Peru, tais veículos de informação não devem escolher, cercear e difundir informações que apenas lhes interessem.

     Fica claro, diante de tal posicionamento, que é fundamental para os jornalistas gozar da proteção e da independência necessárias para realizar suas funções integralmente, visto que são eles que mantêm informada a sociedade, exercendo não só ambas as dimensões do direito à liberdade de expressão e pensamento, como a tentativa do perfeito exercício democrático.

     É de entendimento geral que a ordem pública reclama que, dentro de uma sociedade democrática, sejam garantidas as maiores possibilidades de circulação de notícias, ideias e opiniões, assim como o mais amplo acesso à informação por parte da sociedade em seu conjunto. A liberdade de expressão insere-se na ordem pública primária e radical da democracia, que não é concebível sem o debate livre e sem que a dissidência tenha pleno direito de se manifestar.

     De igual maneira, demonstrou-se que, como consequência da linha editorial assumida pelo Canal 2, o senhor Ivcher foi objeto de diferentes ações intimidatórias. A Corte IDH constatou que, depois de os acionistas minoritários da Companhia assumirem a sua administração, foi proibido o ingresso ao Canal 2 de jornalistas que trabalhavam no programa Contrapunto e modificou-se a linha informativa de tal programa.

     No contexto dos fatos e provas indicados e analisados, sopesando a importância da liberdade de expressão nas esferas em que se apresenta e a necessidade de sua garantia, ou, ainda, reparação de sua violação, a Corte IDH observa que a resolução que deixou sem efeito jurídico o título de nacionalidade do Sr. Ivcher constituiu um meio indireto para restringir sua liberdade de expressão, assim como a dos jornalistas que trabalhavam e investigavam para o programa Contrapunto do Canal 2 da televisão peruana.

     Ao separar o senhor Ivcher do controle do Canal 2, o Estado não apenas restringiu o direito dessas pessoas de circularem notícias, ideias e opiniões, mas afetou também o direito de todos os peruanos a receber informação – limitando, assim, sua liberdade para exercer opções políticas e desenvolver-se plenamente em uma sociedade democrática. Por todo o exposto, a Corte IDH concluiu que o Estado violou o direito à liberdade de expressão, consagrado no artigo 13.1 e 13.3 da Convenção, em detrimento de Baruch Ivcher Bronstein. A Corte IDH registrou, ainda, a impossibilidade de a denúncia da CADH produzir efeitos imediatos, demandando que o Peru honrasse com as obrigações internacionais assumidas.


COMO CITAR

CAUSANILHAS, Tayara. Ivcher Bronstein vs Peru (2001). Casoteca do NIDH – UFRJ. Disponível em: https://nidh.com.br/ivcherbronstein/


LEIA MAIS

LEGALE, Siddharta; MAMEDE, Thainá; ZANON, Matheus. Denúncia da Convenção America de Direitos Humanos e da Organização dos Estados Americanos. Rio de Janeiro: Clínica Interamericana de Direitos Humanos da UFRJ, 2020.

Adquira aqui: https://www.amazon.com.br/denuncacadh 

 

LEGALE, SIddharta. Tribunal Constitucional vs Peru (2001). Casoteca do NIDH – UFRJ. Disponível em: https://nidh.com.br/tribunalconstitucional


 

[1] Monitora de direito constitucional. Pesquisadora do NIDH e integrante da Clínica IDH da UFRJ. Acadêmica. E-mail: [email protected]

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