Raquel Santos de Almeida[1]
Através da Opinião Consultiva n. 23 de 2017 (OC-23/17), como destacado pela própria Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), tem–se pela primeira vez o desenvolvimento do conceito de direito humano ao meio ambiente saudável, mais que simples menção, importando em uma análise mais detida sobre o direito ao meio ambiente saudável/ equilibrado à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), especificamente com base no art.26, combinado com o que prevê o art.11 do Protocolo de São Salvador, no tema de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA).
Na ocasião, a Corte IDH frisou que existe uma interdependência, uma relação intrínseca e necessária, portanto, indissociável, entre a ideia de direitos humanos, meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. Para que os primeiros sejam satisfeitos plenamente, ou seja, sejam realizados, devem ser observados e levados a sério, como pressupostos necessários (e também como condições concomitantes) à tutela e respeito aos últimos.
Recorda-se que as Opiniões Consultivas (OC´s) são expedientes e mecanismos dos quais a Corte IDH, quando instada, se vale para desentranhar o sentido e alcance (real e possível) do artigo ou artigos da CADH relacionados a determinado caso em tese (análise em abstrato). Dessa maneira, as OC’s se prestam a esclarecer o sentido e aplicação da norma, consolidando entendimento da Corte Interamericana e fixando um stare decisis interamericano[2].
Cabendo igualmente enfatizar que a Opinião Consultiva não ostenta apenas esse viés interpretativo e de orientação para aplicação da norma, mas, principalmente a partir da OC-16/99, ainda carreia carga vinculativa, levando, por isso, ao reconhecimento de responsabilidade internacional[3], além de exercer papel significativo no controle de convencionalidade.
O procedimento para a solicitação da atuação consultiva da Corte IDH, a elaboração de pareceres (Opiniões Consultivas), segue previsto no art.64 da Carta Interamericana.
A Opinião Consultiva em questão resultou da solicitação elaborada pelo Estado da Colômbia em 14 de março de 2016. A República da Colômbia solicitante, com fundamento no artigo 64.11 da Convenção Americana e de acordo com o previsto nos artigos 70.1 e 70.22 do Regulamento da Corte IDH, apresentou pedido de parecer consultivo sobre as obrigações dos Estados em relação ao ambiente no âmbito da proteção e garantia dos direitos à vida e à segurança integridade pessoal, a fim de que o Tribunal determinasse de que maneira o Pacto de São José da Costa Rica deveria ser interpretado (à luz das normas ambientais consagradas nos tratados e no direito internacional consuetudinário aplicável entre os respectivos Estados) frente ao risco (iminente) de que projetos de infraestrutura (construções de novas e grandes obras), bem como a exploração de tais empreendimentos afetassem gravemente o ambiente marinho na Região do Grande Caribe e, por conseguinte, o habitat humano, visto que o ambiente marinho equilibrado também seria essencial para o pleno gozo e exercício dos direitos dos habitantes das regiões litorâneas e / ou das ilhas de um Estado Parte no Pacto (o que poderia suscitar até mesmo o deslocamento forçado de populações costeiras).
Logo, a questão de fundo, que suscitou a consulta colombiana, consistia na controvérsia deflagrada em razão da ameaça dos direitos das populações insulares colombianas no Caribe por megaprojetos promovidos por outros Estados, vizinhos ou não, que poderiam ter um impacto transfronteiriço na região e no ambiente marinho.
Há quem aponte por parte da Colômbia o uso estratégico da consulta e do parecer que seria exarado pela Corte IDH no intuito de procurar conter a exploração e atividades da Nicarágua nas águas do Caribe. Se isto de fato ocorreu, pode o caso vir a ser um “bom” exemplo do uso político do discurso dos direitos humanos, ou melhor, uso estratégico geopolítico, dada a utilização (instrumentalização) da Corte IDH para fins políticos. O que não apenas não é recomendável, como deve ser coibido quando se objetiva e pretende, antes de mais nada, a satisfação da Justiça, seus corolários e imperativos tais como a igualdade e liberdade a todos e todas.
Voltando à análise da OC-23/17 em termos jurídicos, na oportunidade, foram fixados pela Corte IDH deveres e obrigações oponíveis aos Estados para a adequada e satisfatória proteção do meio ambiente.
Sendo certo que, conforme destacado pela Corte IDH, ademais de os Estados que compõem o Sistema de Proteção Regional Interamericano estarem obrigados a respeitar e garantir os direitos humanos de todas as pessoas em seus territórios, devem ainda observar, segundo a necessidade de cada caso concreto (considerando a gravidade e especificidades das situações de fato), o respeito a tais direitos para além de seus limites territoriais.
O Tribunal salienta que, de acordo com o parágrafo 47 do Parecer em comento, “entre proteção ambiental e realização de […] direitos humanos, enquanto a degradação ambiental e os efeitos adversos das alterações climáticas afetam o gozo eficaz” dos direitos como um todo, é necessária observância de uma “qualidade ambiental mínima” como condição propícia e anterior (um tipo de antecedente lógico) ao gozo e exercício dos demais direitos humanos, visto que o ser humano e seus direitos se inserem inegavelmente em determinado ambiente, “espaço”.
Seria plausível e razoável crer que a ideia de uma “qualidade ambiental mínima” se insere em uma noção de “mínimo existencial”, associando-se tal ideia à imagem de um feixe de direitos básicos e primordiais, fundamentais ao pleno desenvolvimento satisfatório e pleno do ser humano. Ademais, a Corte IDH avança para além dessa visão antropocêntrica, para incluir e compreender também a proteção do meio ambiente “por causa de sua importância para os outros organismos vivos com os quais o planeta é compartilhado”.[4]
Nesse sentido, os Estados, em sua totalidade, têm a obrigação de evitar os chamados danos transfronteiriços[5]. Salientou o Tribunal:
Como dito acima, a jurisdição de um Estado não se limita a seu espaço territorial (supra parágrafo 74). O termo jurisdição, para os fins das obrigações dos direitos humanos da Convenção Americana, além de conduta extraterritorial, pode também cobrir as atividades de um Estado que tenha efeitos fora de seu território (supra par. 81).
[Parágrafo] 96. Muitos impactos no meio envolvem danos transfronteiriços. A poluição de um país pode tornar-se o problema dos direitos ambientais e humanos de outro, particularmente quando se polui meios, como ar e água, eles atravessam facilmente as fronteiras. A prevenção e regulação da poluição ambiental pela [figura] do dano transfronteiriço deu origem a uma grande parte do direito ambiental internacional, através de acordos bilaterais e regionais ou acordos multilaterais para resolver problemas globais de natureza ambiental, como a destruição do ozônio e as alterações climáticas.
Assim sendo, a Corte IDH determinou aos Estados que, livre e soberanamente, reconheceram e se submetem à sua jurisdição:
- impedir danos ambientais significativos, dentro ou fora de seu território, o que implica regular, supervisionar e supervisionar as atividades sob sua jurisdição, realizar estudos de impacto ambiental, estabelecer planos de contingência e mitigar os danos ocorridos;
- agir de acordo com o princípio da precaução contra possíveis danos sérios ou irreversíveis ao meio ambiente, que afetem os direitos à vida e à integridade pessoal, mesmo na ausência de certeza científica;
- cooperar com outros Estados de boa fé para a proteção contra danos ambientais significativos;
- garantir o acesso a informações sobre possíveis efeitos no meio ambiente;
- garantir o direito à participação pública das pessoas, na tomada de decisões e políticas que possam afetar o meio ambiente, e
- garantir o acesso à justiça, em relação às obrigações do Estado pela proteção do meio ambiente.
Quanto à ampla participação dos interessados, envolvidos e destinatários e o respeito ao devido processo ou procedimento legal no que concerne à elaboração da OC em questão, vale salientar que foram recebidas 51 (cinquenta e uma) observações apresentadas pelos Estados, Agências Estatais, Organizações Internacionais e Nacionais, Instituições Acadêmicas, Organizações Não-Governamentais e individuais. Tendo sido, também, em 22 de março de 2017, instalada e realizada audiência pública na Cidade da Guatemala, quando e onde o Tribunal IDH recebeu as observações orais de 26 (vinte e seis) delegações dos Estados.
A ampla participação verificada decorre do procedimento e iter necessário no Sistema de Proteção Interamericano, ante um pedido de parecer consultivo requerido por um Estado. Exige-se que esta solicitação de consulta, uma vez aceita pela Corte IDH, seja comunicada aos demais Estados e aos órgãos interamericanos, por notificação, bem como ao público em geral, abrindo-se prazo para recebimento de documentos escritos, as mencionadas “observações”. Tal expediente deve ser obedecido. Nota-se no que diz respeito à OC 23/2017 que um considerável número de observações foram oferecidas por entidades acadêmicas, experts e diversas organizações da sociedade civil.
Ora, visto que a Corte IDH abordou a obrigação dos Estados de evitar os ditos danos transfronteiriços[6], outros Estados, tais como a Argentina, Bolívia, Honduras e Panamá, demonstraram especial interesse na consulta, além dos eventuais envolvidos e interessados diretamente nela. Realça-se, pois, a força vinculativa e expansiva da OC-23/17.
O Tribunal IDH debruçou-se sobre os questionamentos aventados pela Colômbia, mas também, tratou de outras questões, salientando sempre o princípio da precaução e a obrigação de cooperação entre os Estados, trazendo, de igual modo, aportes e esclarecimentos importantes ao tema.
Sobre algumas das contribuições significativas da Corte IDH, cabe dar enfoque ao entendimento da mesma acerca da justiciabilidade/sindicabilidade do direito autônomo ao meio ambiente saudável/equilibrado perante o Tribunal, tendo em conta também o impacto em relação aos grupos mais vulneráveis:
“67. Além disso, o Tribunal considera que o impacto sobre esses direitos pode ser mais intenso em determinados grupos em situação de vulnerabilidade. Reconheceu-se que os danos ambientais “sentir-se-ão mais fortemente nos setores da população que já se encontram em situação de vulnerabilidade”, razão pela qual, com base no “direito internacional dos direitos humanos, os Estados estão legalmente obrigados a abordar estas vulnerabilidades, de acordo com o princípio de igualdade e não discriminação. “
No parecer elaborado pela Corte IDH, dá-se especial atenção às comunidades e sociedades (a princípio, fala-se em povos indígenas, contudo, é possível a extensão, por analogia, a populações quilombolas, ribeirinhas, caiçaras ou comunidades tradicionais, de modo geral) que, já em situação de vulnerabilidade, podem e acabam sendo ainda mais vulnerabilizadas e expostas diante da degradação ambiental, nos termos da advertência subscrita[7].
A Corte IDH, igualmente, assinalou que existe a obrigatoriedade inafastável de atendimento ao direito de acesso à informação em matéria ambiental, sendo tal assunto de evidente interesse público:
“221. Adicionalmente, como este Tribunal reconheceu, o direito dos indivíduos de obter informação é complementado por uma obrigação correlativa positiva do Estado em provê-lo, de tal maneira que a pessoa possa ter acesso a conhecer e valorizá-lo. Neste sentido, a obrigação do Estado de fornecer informação ex officio, conhecida como “obrigação de transparência ativa”, impõe aos Estados o dever de fornecer informações necessárias para que as pessoas exerçam outros direitos, o que é particularmente relevante. sobre o direito à vida, integridade pessoal e saúde. Da mesma forma, este Tribunal indicou que a obrigação de transparência ativa nestes casos impõe uma obrigação aos Estados de fornecer ao público o máximo de informação informal. Essas informações devem ser completas, compreensíveis, fornecidas em linguagem acessível, atualizadas e fornecidas de maneira eficaz para diferentes setores da população. “
Ora, a proteção ambiental regional não será suficiente e eficiente se observada e perseguida por apenas um Estado e no que compreender ao seu território tão-somente, em razão da existência do supramencionado dano transfronteiriço. A tutela do meio ambiente exige, em última análise, a devida, coordenada e rigorosa cooperação entre os Estados.
De acordo com a orientação da Corte IDH, há necessidade de se estabelecer entre os Estados um canal de comunicação e troca de informações constantes e atualizadas quanto aos eventuais danos ambientais em seus respectivos territórios e os possíveis impactos e reflexos transnacionais; esta conduta se mostra, em verdade, como dever de cuidado e informação mútuos.
O Tribunal identifica um dever geral de informação, independentemente da manifestação de interesse específico para tanto, ou seja, sem qualquer necessidade de justificativa específica ou de que o pedido por informações e esclarecimentos seja justificado para assim se proceder.
De outra sorte, exige-se a apresentação de justificativa por parte do Estado que, porventura, se nega a observar esse dever geral, furtando-se da entrega de informações solicitadas, dado o interesse coletivo indiscutível no tema. Assim se imporia inversão do ônus da prova, conforme expresso nos itens 224-225 da OC-23/17, cabendo ao Estado que sonegasse informações de tal natureza demonstrar suas razões nesse sentido e apresentar justificativa plausível para sua negativa ou omissão.
Ponto importante ainda a ser enfatizado é que ao tratar de acesso à justiça sob a perspectiva do dano ambiental e todos os eventuais atingidos e lesados, a Corte IDH afirma ser norma jus cogens e, portanto, ante os potenciais danos transfronteiriços, caberia proteção e acesso (à sua jurisdição) a todos os afetados e lesados no exterior, mesmo se não nacionais do Estado responsável (como se depreende dos parágrafos 233, 236 e 239).
Por todas as considerações acima descritas, além daquelas que não destacamos no presente, a OC-23/17 representa um relevante avanço, atendendo ao princípio do desenvolvimento progressivo do art. 26 da CADH, ao integrar à CADH outras fontes do direito internacional [8], como a Declaração do Rio de 1992, em seus princípios (dispositivos) 24 e 27, no sentido de recrudescer a proteção ambiental e garantir a efetiva tutela do meio ambiente (por si só inegável direito humano[9] e essencial ao exercício e fruição dos demais direitos humanos) pelo Sistema Interamericano, bem como seu respeito por todos os Estados e entes privados no âmbito regional.
COMO CITAR ESTE ARTIGO
ALMEIDA, Raquel Santos de. OPINIÃO CONSULTA OC-23/17 MEIO AMBIENTE E DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <https://nidh.com.br/oc23> Acessado em:
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LEGALE. Siddharta; CAUSANILHAS, Tayara. A OPINIÃO CONSULTIVA N.01/82 DA CORTE IDH: UMA “METAOPINIÃO”? Disponível em: <https://nidh.com.br/a-opiniao-consultiva-n-1-82-da-corte-idh-uma-metaopiniao/> Acessado em : <>
[1] Professora de Direito Internacional da FAAR. Mestre em Direito Constitucional pelo PPGDC-UFF. Bacharel em Direito pela UERJ. Advogada. E-mail: [email protected]
[2] Como bem aponta Eduardo Manuel Val, ao analisar a relação de vinculação das OC’s e a atuação contenciosa da Corte IDH, sob uma lógica que muito se assemelha a um sistema de vinculação aos precedentes. Cf. VAL, Eduardo Manuel ; GOMES, E. P. G. F. ; RAMIRES, R. L. C. F. . CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E OS TRIBUNAIS BRASILEIROS NO CONTROLE DIFUSO DE CONVENCIONALIDADE: O RECONHECIMENTO E CUMPRIMENTO DAS DECISÕES INTERNACIONAIS NO BRASIL. In: ; Siddharta Legale ;José Ribas Vieira; Margarida Lacombe. (Org.). Jurisdição constitucional e direito constitucional internacional. 1ed.Belo Horizonte: Fórum, 2016, v. 1, p. 178-202.
[3] Mesmo que não apresente o efeito vinculativo (clássico) direto de uma sentença condenatória no contencioso, segundo ressalta Siddharta Legale seu grau e natureza vinculante mostra-se de modo reflexo, mediato, indireto. A OC é obrigatória e vinculante no exato sentido e medida em que geraria, à frente, uma vez inobservada, uma responsabilidade internacional (portanto, ainda que indireta e futura, oponível e identificável)
[4] “Ao contrário de outros direitos, protege os componentes do ambiente, tais como florestas, rios, mares e outros, como os próprios interesses legais, mesmo na ausência de certeza ou prova sobre o risco para os indivíduos. Trata-se de proteger a natureza e o meio ambiente não apenas por causa de sua conexão com uma utilidade para os seres humanos, ou pelos efeitos que sua degradação poderia causar sobre os direitos de outras pessoas, como saúde, vida ou integridade pessoal, mas por causa de sua importância para os outros organismos vivos com os quais o planeta é compartilhado, também merecedores de proteção em si mesmos. Nesse sentido, a Corte observa uma tendência a reconhecer o status legal e, portanto, os direitos à natureza, não apenas nas decisões judiciais, mas até mesmo nas ordens constitucionais.Assim, o direito a um ambiente saudável como direito autônomo é o conteúdo ambiental diferente decorrente da proteção de outros direitos, como o direito à vida ou o direito à Integridade “(parágrafos. 62 e 63) .
[5] Em geral a poluição atmosférica, águas e até do solo não permanece restrita aos limites de determinado Estado, não conhecendo fronteiras geográficas ou/e políticas entre países. A maioria dos efeitos e danos ambientais não se circunscreve a um território e soberania, mas comumente ultrapassam fronteiras físicas gerando repercussões e impactos em nível internacional, global até. Sabe-se, inclusive, que o meio ambiente equilibrado ou saudável é direito difuso, direito transindividual, meta individual.
O chamado dano “transfronteiriço” expressa tal figura e ostenta essa natureza “compartilhada”: a poluição ou degradação de um local pode causar efeitos deletérios em outro lugar vizinho, ou mesmo em local geograficamente distante ou nos espaços de domínio público internacional.
Em breve digressão, recorda-se que a origem do conceito de dano transfronteiriço e a respectiva responsabilização (do país de onde esta foi produzida) no Direito Público Internacional foi o episódio de poluição de ar no continente americano, um dos primeiros processos contenciosos internacionais nesse sentido; o célebre caso da Fonderie de Trail, verdadeiro leading case na matéria, envolvendo Estados Unidos e Canadá, iniciado nos anos 30, e que levou quase 40 (quarenta) anos para ser resolvido, referente à fumaça prejudicial produzida pela fábrica Fonderie de Trail, situada no espaço canadense, que alcançava, impulsionada pelo vento, o território norte- americano. A solução obtida pela via da arbitragem em 1941, estabeleceu como regra, diga-se, a primeira regra de Direito Ambiental Internacional, que haveria uma limitação direta a soberania de um Estado, vez que, embora, a liberdade e soberania de um país para realizar o que bem quisesse em seu território esbarraria na obrigação de não causar dano em um país vizinho (essa regra inicial se mostrou ainda bem localizada, ainda sem abrangência global)
Outro caso importante, que acabou por definitivo em consolidar o conceito de dano transfonteiriço e a devida e correlata responsabilização internacional ocorreu na década de 60 do séc.XX, no âmbito da continente europeu: a Suécia ao estudar ocorrência e efeitos da chuva ácida em sua mata preservada de coníferas, observou que a poluição causadora do fenômeno danoso tinha origem na Europa continental e subia à região da Escandinávia. Assim o Estado Sueco precisou negociar com todos os outros países europeus industrializados (que geravam o risco e potencial de dano ambiental, verificado no caso concreto) na tentativa de estabelecer um sistema de cooperação e proteção coordenado para evitar e reduzir efeitos da chuva ácida.
Na mesma década, através da Carta Europeia da Água em 1968 essa noção de dano compartilhado foi lembrada: “a água não tem fronteiras” – seja nos rios internacionais, que cortam diversos países, seja, mesmo, quando se reporta águas cujo curso se observa dentro das fronteiras de um determinado país (até porque a água não permanece, como sabido apenas no estado líquido, ela evapora, sobe á atmosfera e se precipita). No âmbito da ON, em razão do caso sueco, a Conferencia de Estocolmo de 1072 foi o primeiro fórum mundial de cooperação na tutela ambiental e debate de proteção ao meio ambiente, onde também se discutiu o problema do dano transfronteiriço.
[6] Relaciona-se com a ideia de dano transfronteiriço e sua necessária responsabilização, sendo um corolário daquela noção, o “princípio da utilização não danosa do território”, definido como: “A liberdade dos Estados exercerem ou de permitirem que sejam exercidas atividades sobre o seu território ou noutros lugares colocados sob a sua jurisdição ou o seu controlo não é ilimitada. Ela está submetida à obrigação geral de prevenir ou de reduzir ao mínimo o risco de causar um dano transfronteiriço significativo” (relatório da CDI sobre a 48º sessão, 1996). Verdadeira restrição à noção clássica de soberania do Estado.
[7] “169. Nos casos de projetos que possam afetar o território das comunidades indígenas, os estudos de impacto ambiental e social devem respeitar as tradições e a cultura dos povos indígenas. Nesse sentido, é necessário levar em conta a conexão intrínseca que os membros dos povos indígenas e tribais têm com seu território. É necessário proteger esta conexão, entre o território e os recursos naturais que tradicionalmente utilizaram e que são necessários para sua sobrevivência física e cultural e para o desenvolvimento e continuidade de sua visão de mundo, a fim de garantir que possam continuar vivendo seu modo de vida tradicional. e que sua identidade cultural, estrutura social, sistema econômico, costumes, crenças e tradições distintivas são respeitadas, garantidas e protegidas pelos Estados. “
[8] LEGALE, Siddharta. A Corte Interamericana de Direitos Humanos como Tribunal Constitucional Transnacional. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado pela UERJ, 2017, capítulo 2: “Deixando de lado essa batalha terminológica relacionada ao processo de constitucionalização da CADH, é importante perceber que a Convenção Americana de Direitos Humanos se tornou uma espécie atracadouro de diversas fontes do direito internacional, que opera de modo muito semelhante à uma Constituição, já que ela introjeta normas superiores – as de jus cogens – que servem de parâmetro às demais. Cabe o paralelismo com uma Constituição, especialmente se concebermos essa Constituição como costumeira, forjada pela prática reiterada em exigir seu cumprimento e pela opinio juris de sua vinculação, cujo descumprimento aos que assinaram enseja responsabilidade internacional.”
[9] Percebe-se que a partir da Declaração de Estocolmo de 1972, no plano global houve um recrudescimento e transformação da tutela de direito ambiental que passou a ser perseguida e consagrada em tratados internacionais (AMARAL JUNIOR, 2009, p.85.)
(…) a equiparação do meio ambiente à liberdade e à igualdade, como os três direitos fundamentais de todo o ser humano; a consideração de direito inalienável no sentido de que não cabe absoluta disposição sobre o mesmo e que sua titularidade comporta deveres; e a atenção às gerações futuras, como beneficiárias de tal direito (CAPELLA, Vicente Bellver. Ecologi: de las razones a los derechos. Granada: Comares, 1994, p. 194. apud GAVIÃO FILHO, Anízio Pires. Direito fundamental ao ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 22.)