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A Opinião Consultiva N. 05/85 da Corte IDH: dimensões e restrições da liberdade de expressão

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Siddharta Legale[1]

Tayara Causanilhas[2]

     O governo da Costa Rica solicitou, em julho de 1985, uma opinião consultiva sobre a compatibilidade da Ley Orgánica del Colegio de Periodistas de Costa Rica n. 4420 de 1969 (Lei n. 4420) com os artigos 13 e 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).  A controvérsia sobre a associação obrigatória de jornalistas, exigida pela lei do Estado, no caso de violar à liberdade de expressão. A Opinião Consultiva da Corte IDH é histórica: foi a primeira vez que se manifestou sobre aspectos  – individual e social – da proteção da liberdade de expressão, bem como sobre os critérios para que restrições a este direito sejam válidas.

     A solicitação originou-se de uma petição da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que interrogou sobre as compatibilidade. Entretanto, como a competência ratione personae de consultas à CorteIDH (CADH, art. 64 (1)) restringe-se aos Estados Membros e aos órgãos enumerados na Carta da OEA, o Estado da Costa Rica assumiu o questionamento e iniciou a solicitação de OC. De todo modo, a SIP foi admitida como amicus curiae posteriormente.

     A OC teve como pano de fundo o caso do jornalista Stephen Schmidt, preso por três meses sob a alegação de exercício ilegal da profissão de jornalista. O caso foi inicialmente apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no Relatório n. 17 de 1994 (caso n. 9178), mas não foi levado à Corte IDH – poderia ter sido o primeiro caso contencioso da Corte IDH. Provavelmente por isso, a Corte IDH criticou abertamente à postura do caso Schmidt não ter sido submetido a sua jurisdição pela CIDH. Restou claro o conflito de competências nesse momento inicial do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.

     Quanto ao conteúdo desta OC, a Corte IDH diferenciou as duas dimensões dos direitos relacionados à liberdade de expressão. Da dimensão individual, ressaltou o direito de cada indivíduo promover, publicar e esgotar suas ideias no âmbito público. Da social, chamou atenção para a necessidade da promoção e proteção ao acesso à informação. Ambas as dimensões devem ser garantidas simultaneamente.

     Na dimensão individual, a liberdade de expressão não se esgota no reconhecimento teórico do direito de falar e escrever, compreendendo, inseparavelmente, o direito de utilizar qualquer meio apropriado para difundir o pensamento e torná-lo público. Entendeu-se e entende-se que a CADH, ao afirmar o direito de difundir ideias e informações por qualquer procedimento, perpetuou que a expressão e a difusão de pensamentos são indivisíveis, de forma que o direito compreende, portanto, ambos os aspectos de forma concomitante.

     Na dimensão social, a liberdade de expressão foi consagrada pela CADH como um meio de intercâmbio de ideias e informações com finalidade social. Para a sociedade, é tão fundamental que a informação seja difundida quanto é para o particular o ato de propagá-la. O conhecimento, especificamente sua divulgação, é, portanto, protegido no aspecto da tutela da do direito à informação correta pelos cidadãos.

     No caso Schmidt, por exemplo, não seria lícito invocar um suposto “direito da sociedade” para ter acesso à informação, controlar e censurar informações, sob a alegação de que as informações propagadas pelo jornalistas perigassem ser inverdadeiras. Tampouco seria admissível que, para difusão de ideias e pensamentos, se constituíssem monopólios públicos ou privados sobre os meios de comunicação. Ambas as práticas levariam tão somente ao molde da comunicação sob apena um ponto de vista, incongruente com os princípios democráticos.

     Ao tratar da dimensão social da liberdade de expressão, a Corte IDH destacou que os meios de comunicação social materializam o exercício das dimensões, de modo tal que estaria vedado o controle de seu funcionamento. Mais do que isso, defendeu que tais meios de comunicação devem estar abertos a todos, sem qualquer tipo de discriminação; o controle, censura ou restrição arbitrária da publicação de informações violaria este aspecto.

     Ainda quanto ao conteúdo, outro aspecto fundamental da OC foi o reconhecimento das exceções compatíveis com os Direitos Humanos. A Corte IDH destacou que estão previstas na CADH, em seu art. 13(2): casos de proteção da seguridade nacional, da ordem e da moral públicas e em respeito do direito ou da reputação dos indivíduos. Nesses casos, a Corte IDH reconheceu que a liberdade de expressão e pensamento admite certas restrições provenientes de sua natureza, sobre as quais serão legítimas a tutela e o controle. Para avaliar se houve ou não a violação, é preciso verificar, dentro das previsões da CADH, os aspectos desse direito que são restringíveis por sua natureza.

     Por exemplo, o conceito de ordem pública exige, dentro de uma sociedade democrática, uma interpretação bastante comedida em prol da maior possibilidade de circulação de notícias, ideias e opiniões, bem como o amplo acesso à informação. É válido, por exemplo, que a associação promova a comunicação coletiva, defenda associados, estimule a cultura, etc[3].

     Essas razões de ordem pública que validam a existência das associações profissionais, porém, não podem legitimar essas mesmas associações na censura dos jornalistas para sua associação obrigatória. É contraditório invocar uma restrição da liberdade de expressão como meio para garanti-la. Nesse ponto, o exercício da medicina e da advocacia, segundo a própria Corte IDH, diferenciar-se-ia do exercício do jornalismo. Seriam, portanto, protegidos de formas igualmente distintas. O jornalismo será diretamente protegido pela CADH em prol da liberdade de expressão.

     Por tais motivos, a Corte IDH declarou incompatível com a CADH a Lei n. 4420 do Estado da Costa Rica, Ley Orgánica del Colegio de Periodistas de Costa Rica, cujo conteúdo restringia o exercício da profissão de jornalista ao exigir a associação para atuar como comentarista ou colunista, de forma permanente ou ocasional, remunerada ou gratuita.

     Justamente por isso, a Corte IDH destacou que a própria CADH já define taxativamente os meios pelos quais é possível estabelecer as restrições à expressão, interpretando, à luz do art. 29 (pro persona), os direitos humanos devem ser observados de forma extensiva e suas restrições[4]. Proíbe-se, por exemplo, a censura prévia, que será sempre incompatível com a plena vigência dos direitos garantidos no artigo 13 da CADH, salvo as exceções contempladas no inciso 4, referentes a espetáculos públicos.

     Proíbe-se, ainda, a censura ao abuso da liberdade de expressão por meio de medidas preventivas. Eventuais violações podem ensejar a responsabilidade (civil ou penal) de quem as cometeu. Mesmo nestes casos, existe uma série de requisitos, igualmente previstos no instrumento, para que a efetivação não viole o direito – como observado no art. 13 (2), de caráter taxativo.

     O direito à liberdade de expressão é intrínseco aos regimes democráticos. Não é possível construir uma democracia sem livre debate, direito ao manifesto, acesso e possibilidade de informação – características notadamente pertencentes a ambas as dimensões estipuladas pela Corte IDH em sua interpretação do art. 13 da CADH. A propósito, vale registrar duas passagens do voto separado do magistrado Pedro NIkken:

3. La Convención Americana, como lo ha señalado la Corte, define de la manera más amplia a la libertad de expresión, que comprende, según el artículo 13, el derecho de toda persona a buscar y difundir información por cualquier procedimiento de su elección. Un texto tan categórico no puede coexistir, lógicamente, con un régimen legal que autoriza la búsqueda de información, y su difusión a través de los medios de comunicación social, solamente a un grupo reducido de personas, como son los miembros de un colegio de periodistas y que, en consecuencia, excluye de ese ámbito a la mayoría de la población. (grifos acrescentados)

11. Sin embargo, no creo que la supresión pura y simple de las leyes de colegiación, en los países donde existan, se traduzca forzosamente en una mejora de las posibilidades reales de expresión e información. Un gremio débil, carente de un estatuto que garantice su independencia, puede ser el contexto adecuado para que a través de “controles particulares” se establezcan los medios indirectos, prohibidos por el artículo 13.3, “encaminados a impedir la comunicación y la circulación de ideas y opiniones”. No creo que sería justo ni prudente interpretar la Opinión de la Corte como señalando que la colegiación limita la libertad de expresión y que basta eliminar esa colegiación para restablecer automáticamente dicha libertad, porque esa aseveración no es cierta. La sola supresión de la colegiación puede conducir a otorgar mayor poder de “control particular” a unos pocos empresarios de la prensa, sin provecho especial para la comunidad y sin que haya ninguna seguridad de que se abrirá el acceso a los medios de difusión a todo no colegiado. Puede, más bien, favorecer una incondicionalidad de los periodistas, aun al margen de la ética, en favor de su patrono, cosa ésta que también podría llegar a lesionar los valores preservados por el artículo 13.2.(grifos acrescentados)

     Note-se, nas passagens destacadas, que, depois de reconhecer que um “texto categórico” como o art. 13 da CADH, é vedada a redução dos jornalistas que possam expressar-se para tão somente aos associados. Pedro Nikken enfatiza, com razão, que a mera supressão da associação obrigatória será insuficiente para abrir os meios de comunicação para os não associados. Esse acesso real aos meios de comunicação por toda a comunidade é que traduzirá mudanças reais no sistema de liberdade de expressão em uma sociedade democrática.

     Por isso, as lições dessa OC Corte IDH permanecem atuais e relevantes, especialmente quando não se reduz o conteúdo à vedação da associação obrigatória. Tanto é verdade que esses parâmetros serão retomados e mantidos nos casos contenciosos, como na Olmedo Bustos vs. Chile (2001), “Última Tentação de Cristo”; no caso Ivcher Bronstein vs. Peru (2001); e no Granier y otros vs. Venezuela (2013), envolvendo a proteção de direitos dos sócios de canais de TV que faziam opinião aos governos de Alberto Fujimori e Hugo Chávez.

     As dimensões individual e social da liberdade de expressão, como definidas pela Corte IDH nesta OC, perpetuam-se até hoje e devem ser vistas como um chamamento ao seu desenvolvimento progressivo, nos termos do art. 26 da CADH, para atender as reivindicações das sociedades democráticas latino-americanas.


[1] Professor adjunto de Direito Constitucional da FND-UFRJ. Coordenador do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos. E-mail: [email protected]

[2] Monitora de Direito Constitucional I e II. Pesquisadora PIBIC-UFRJ. Acadêmica da FND-UFRJ. E-mail: [email protected]

[3] Esse ponto foi objeto de particular atenção do voto separado de Rafael Nieto Navia.

[4] A respeito, o voto separado de Rodolfo Piza Escalante esclarece a diferença do modelo interamericano em relação ao europeu ou universal. Confira-se: “2. En primer lugar, recojo la opinión de la Corte, de que el contenido de la actividad de los periodistas coincide totalmente con el ejercicio de la libertad de expresión, tal como ésta está consagrada por el artículo 13 de la Convención Americana, de manera que toda restricción a dicha actividad es una restricción a dicha libertad (v. p.ej. Nos. 72, 74, 75 y 77 de la Opinión principal); así como la de que las únicas restricciones permisibles a esa libertad son las previstas taxativamente por el párrafo 2 del mismo artículo, sin que sea lícito admitir otras derivadas de una interpretación extensiva de ese texto (v. Nos. 39, 46 y 52), ni de la aplicación de otras normas, como la general del artículo 32 de la propia Convención (v. No. 65), o, menos, las de otros instrumentos internacionales (v. Nos. 51 y 52), que tienen, desde luego, un altísimo valor interpretativo, pero frente a los cuales es obvio que la Convención Americana quiso ir mucho más lejos en la definición y en la protección de dicha libertad, apartándose claramente en este punto de sus modelos europeo y universal, el artículo 10 de la Convención Europea y el artículo 19 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (v. Nos. 43, 45 y 50).”

8 Responses

  1. JOAO

    Com base no interessante tema abordado liberdade de expressão, um dos Direitos fundamentais, é de extrema importância ressaltar o direito de qualquer um manifestar, livremente, opiniões, ideias e pensamentos pessoais sem medo de retaliação ou censura por parte do governo ou de outros membros da sociedade.
    Portanto, conforme o texto faz menção, não é justo “invocar uma restrição da liberdade de expressão como meio para garanti-la.”.

  2. Jennifer Marques De Franca

    A liberdade de informação permite ao indivíduo ter direito de comunicar livremente os fatos e também o direito difuso de ser informado sobre os mesmos. A liberdade de expressão permite o direito de externar ideias, opiniões, e pensamentos em geral. As liberdades de expressão e de informação, tanto na dimensão coletiva quando na individual, servem de fundamento também para outras liberdades, o que justifica sua posição diferenciada em relação a alguns direitos individualmente considerados.
    Analisando o texto quanto a sua extensão podemos dizer, que trata-se de uma interpretação extensiva, pois amplia o sentido do que seria a liberdade de expressão e quanto a sua natureza, podemos dizer que trata-se de uma interpretação evolutiva, pois a comunicação veio evoluindo de acordo com a necessidade da sociedade.

  3. Qual seria a ideia de liberdade?
    Há décadas se discute sobre a liberdade. Após diversas revoluções, guerras, ainda se discute sobre a liberdade, mas agora como um Direito Fundamental. Foi somente entre o final do século XVIII e início do século XIX que os direitos fundamentais, responsáveis por assegurar a todas as pessoas condições mínimas para uma vida plena e sadia, passaram a ser, aos poucos, introduzidos nos documentos constitucionais.
    A liberdade está entre os direitos fundamentais de primeira dimensão, que ligados ao valor liberdade, aos direitos civis e políticos. São direitos individuais com caráter negativo por exigirem diretamente uma abstenção do Estado, seu principal destinatário. Algumas correntes filosóficas inspiradas em Hobbes consideram liberdade um valor negativo, já que ela não é necessariamente a presença de algo, de um direito, de uma verdade. A liberdade é a ausência de um valor: a impossibilidade de falar, de escrever, de se manifestar, de agir, de pensar. O adjetivo “livre” seria, portanto, um estado do ser humano e não uma condição permanente – as pessoas estão livres, e não são livres.
    Essa garantia assegurada a qualquer indivíduo de se manifestar, buscar e receber ideias e informações de todos os tipos, com ou sem a intervenção de terceiros, por meio de linguagens oral, escrita, artística ou qualquer outro meio de comunicação. Principalmente utilizada por jornalistas. A liberdade de expressão pode sofrer restrições por meio de medidas preventivas, no que se diz respeito quando for utilizado de forma abusiva. Cada ente estatal possui sua forma de abordar a questão, que pode trazer certos problemas quando mal ministrado.
    A Corte IDH declarou incompatível com a CADH a Lei n. 4420 do Estado da Costa Rica, Ley Orgánica del Colegio de Periodistas de Costa Rica, cujo conteúdo restringia o exercício da profissão de jornalista , Ou seja, utilizou o método hermenêutico de interpretação quanto a Extensão, modo restritivo e Ab-Rogante da Lei proposta pelo Estado da Costa Rica . A lei não seria adequada para o fim proposto.

  4. Monique De Lima Pinheiro Silva

    Esse artigo tem como base a proteção da liberdade de expressão. A sociedade interamericana de impressa levou a questão de restrição do exercício da profissão dos jornalistas à corte internacional de direitos humanos que teve como pano de fundo em sua decisão o caso do jornalista Stephen Schmidt que foi preso por três meses sobre alegação do exercício ilegal da profissão, pois perante a lei o jornalista precisa estar associado para agir como comentarista ou colunista. Ao fazer pública sua decisão a corte internacional de direitos humanos, ressaltou o direito de cada indivíduo de promover, publicar e esgotar sua ideia no âmbito publico, perpetuando que a expressão e difusão de pensamentos não podem ser separados, e defendeu que os meios de comunicação devem estar abertos a todos sem qualquer restrição, pois é contraditório restringir a liberdade de expressão a fim de garanti-la. Essa decisão da corte teve como base a interpretação sistemática e extensiva que foi contra a Lei n. 4420 do Estado da Costa Rica, Lei Orgánica del Colegio de Periodistas de Costa Rica, que restringia o exercício da profissão. Esta lei pode ser classificada como norma constitucional de eficácia contida já que tem sua aplicação direta e imediata com alcance restringido por lei.  

  5. João Victor de Lima

    Conforme trecho supracitado em texto, O direito à liberdade de expressão é intrínseco aos regimes democráticos. Não é possível construir uma democracia sem livre debate, direito ao manifesto, acesso e possibilidade de informação, tendo em vista a liberdade de expressão a garantia assegurada a qualquer indivíduo de se manifestar, buscar e receber ideias e informações de todos os tipos, com ou sem a intervenção de terceiros, por meio de linguagens oral, escrita, artística ou qualquer outro meio de comunicação.

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