OPINIÃO CONSULTIVA N.º 11/90 DA CORTE IDH E O ESGOTAMENTO MATERIAL DOS RECURSOS INTERNOS
Luiza Deschamps [1]
Thainá Mamede Couto da Cruz [2]
Danielle do Nascimento Chrystello [3]
Foi publicada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em 11 de agosto de 1990 a opinião consultiva de número 11, em resposta a solicitação enviada em janeiro de 1989 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), versando sobre a interpretação do artigo 46 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)[4].
O questionamento específico realizado pela CIDH se consolidou em torno do esgotamento dos recursos internos e das possibilidades de não aplicação desse requisito em duas situações específicas:
- a das pessoas necessitadas economicamente[5] (caso essa tenha sido a razão preponderante para incapacidade de utilização dos recursos internos); e
- a de um vício existente dentro do sistema jurídico, gerado pelo medo e que impeça a representação e defesa do solicitante por advogados, deixando assim o acesso ao sistema judiciário interno minimamente prejudicado.
Para ambas as situações descritas a CIDH busca orientação, sobre o enquadramento como exceção prevista no art. 46.2, e em caso afirmativo, quais critérios devem ser considerados para admissibilidade. Portanto a resposta fornecida pela Corte IDH se desenvolve em torno da possibilidade ou impossibilidade de reconhecer estas situações levantadas pela CIDH como incluídas ou não, na previsão das alíneas do art. 46.2 da CADH, uma vez que a construção dessas exceções se pauta em situações nas quais a despeito da existência formal de recursos internos, se configure uma limitação de acesso pelo indivíduo, na esfera prática que se materializa na sua incapacidade de utilizá-los, podendo essa indisponibilidade ser gerada por vias legais ou por vias de fato.
Depreende-se então que se deve esgotar os recursos internos somente se a lei e/ou as condições assim permitirem. Importa observar que o Estado não pode valer-se da regra do esgotamento dos recursos internos em má-fé, visando impedir o acesso da vítima à jurisdição internacional, ainda nesta seara é necessário recordar que o ônus da prova de comprovar quais recursos internos deveriam ter sidos esgotados recai sobre o Estado. Tal qual disposto nos artigos 30, §§4º e 7º , 37 §3º e 38 do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos [6]. Há ainda um a necessidade de que o posicionamento do Estado quanto ao não esgotamento dos recursos internos seja realizado quando toma conhecimento do peticionamento realizado junto a CIDH, sendo silente permite que se considere renúncia tácita a em relação a este requisito, ou seja, o reconhecimento que esse requisito de admissibilidade foi cumprido, pressuposto atualmente utilizado pela Corte IDH ao rejeitar esse argumento defesa quando um caso chega em sua esfera de atuação[7].
Compreende-se assim a necessidade de esgotamento material dos recursos internos, podendo estes estar ou não em consonância com o esgotamento formal destes recursos. Ademais, é necessário dialogar para que gradualmente seja assegurado o acesso direito dos indivíduos às instâncias legais internacionais quando as instâncias domésticas se mostrarem incapazes de garantir a realização da justiça. A fundamentação para essa leitura material do esgotamento se baseia nos artigos 1.1, 8 (1., 2 d e e) e 24 da CADH, cuja lógica será abordada a seguir.
Em primeiro lugar, a obrigação de respeitar direitos (art. 1.1. da CADH) veda a discriminação por razões de posição econômica, de modo que deixar a pessoa sem acesso à justiça por formalismo importa numa discriminação. Em segundo lugar, o direito de ser assistido por um defensor é irrenunciável (art. 8: 1, 2, d e e da CADH)[8], razão pela qual a presença de medo generalizado que acabe por inibir a participação de tais defensores compromete um direito do qual não se pode abrir mão. Em terceiro lugar, a igualdade perante a lei (art. 24 da CADH)[9] impõe uma igual proteção de direitos igual a todos, que ao ser interpretado deve ser entendido como proibição da discriminação de direito, não somente no que diz respeito ao direitos contidos na CADH, como também em relação a todas as leis aprovadas e aplicadas pelos Estados.
Ao tratar especificamente sobre a condição de insuficiência econômica, a Corte IDH aponta que essa situação, pode ser por si só suficiente para que não se exija do indivíduo que se esgote os recursos internos, como em muitos dos países membros da OEA, onde haja a inexistência de gratuidade da justiça (custas processuais, advogados etc.), que devem ser ainda somados a necessidade de arcar também com custos extrajudiciais para garantir o acesso aos recursos internos, o que em muitos casos pode incluir deslocamento, hospedagem e dias não trabalhados.
Conforme exposto no Caso Velásquez Rodrígues vs., Honduras (1988), a primeira obrigação assumida pelos Estados partes é a de “respeitar os direitos e liberdades” reconhecidos na Convenção. A segunda obrigação é de “garantir” o livre e pleno exercício dos direitos reconhecidos na Convenção a toda pessoa sujeita à sua jurisdição. Vejamos[10]:
(…) Esta obrigação implica o dever dos Estados Partes de organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas as estruturas através das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos (…) A obrigação de garantir o livre e pleno exercício dos direitos humanos não se esgota com a existência de uma ordem normativa dirigida a fazer possível o cumprimento desta obrigação, mas comporta a necessidade de uma conduta governamental que assegure a existência, na realidade, de uma eficaz garantia do livre e pleno exercício dos direitos humanos.
Essa incapacidade de fundo econômico seria razão, também, por ferir o art.1.1 uma vez que constituiria discriminação de origem socioeconômica, que é expressamente vedada por este. Tal discriminação impossibilitaria a efetivação da tutela jurídica pretendida pela lei, de modo que a igualdade do indivíduo perante a lei também é afetada, visto que ele não consegue garantir o alcance da tutela por ela prevista a seus bens jurídicos.
Em relação ao art. 8º da CADH, a Corte IDH sustenta que para que se exija o esgotamento dos recursos internos há necessidade de que este tenha se realizado em sua plenitude, o que envolve acesso a aparato legal para que possa ser efetiva, o que varia partindo das realidades encontradas nos países membros, dentre as quais: a presença ou não de defensores públicos e/ou a possibilidade de autodefesa, ensejam situações que, a priori, possibilitariam ultrapassar a barreira imposta pela condição socioeconômica, não sendo assim fator limitante das garantias judiciais tuteladas nesse artigo.
Ademais, conforme previsão literal do artigo 8.2 (e) da CADH, “toda pessoa tem o direito de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei”.
Contudo há de se realizar uma análise a cada caso concreto, uma vez que a disfuncionalidade desses mecanismos, pode acarretar uma situação na qual o indivíduo não consiga se defender devido a sua indisponibilidade de recursos para fazê-lo. Neste cenário poderia se incluir por um lado, a dificuldade de acesso/disponibilidade do defensor público, por exemplo em áreas rurais ou mais distantes das principais cidades; por outro lado, admitir autodefesa teria uma tendência de potencializar falhas na plena realização do direito de defesa, do ponto de vista material, embora, de um ponto de vista formal, seja possível alegar o respeito as garantias judiciais do devido processo. Sobre está hipótese a Corte apresenta o entendimento de que caso se comprove ineficiência da defesa, há a violação das garantias judiciais do devido processo legal e da ampla defesa.
Ainda sobre a hipótese de desprovimento de recursos a Corte aponta que pode ocasionar a violação também do artigo 24 da CADH, visto que há desigualdade de tratamento da lei recorrente da situação econômica do demandante. De maneira que, a Corte IDH abre a possibilidade aos mais necessitados economicamente de empregar a exceção prevista pelo art. 46.2.b, quando se demonstre que houve tentativa de acesso aos remédios domésticos, e que a não concretização do direito formal e/ou material de acesso à justiça se deu em função da insuficiência de recursos financeiros.
A abertura a essa possibilidade, remete a necessidade de se discutir a questão dos custos de uma litigância no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, uma vez que a base do não acesso à justiça a nível doméstico se baseou na falta de dinheiro. Ainda que se afirme que é impossível reduzir uma violação de Direitos Humanos, a sua reparação pecuniária em torno da necessidade econômica, tendo esse sido fator preponderante para que o acesso à justiça não consiga ser efetivado no plano interno ao valor pecuniário, dada a dimensão existencial dos direitos fundamentais, seja porque não existem custas judiciais propriamente ditas a serem pagas à Corte IDH.
É verdade, porém, que a parte que em audiência pública propuser a produção de provas, nos termos do art. 69 do Regulamento da CIDH arcará com os custos dessas provas. Some-se a isso o próprio custo de impulsionar o processo inicialmente na CIDH para admissibilidade e, posteriormente, perante a Corte em dois países diferentes: a Costa Rica e os Estados Unidos. Perceberemos a conclusão óbvia – embora doutrinariamente controvertida até em uma época recente – de que todos os direitos têm custo, como Holmes e Sunstein[11] nos advertem. E não seria diferente com os Direitos Humanos e com o acesso à justiça.
Portanto, é preciso entender em sentido amplo as custas de mobilizar a jurisdição internacional. Envolve, por exemplo, a ausência ou carência de advogados, privados ou públicos. Seguimos a mesma estrutura do professor Mauro Cappelleti, procurando avançar e retratar os dilemas próprios do acesso à justiça internacional, no caso, da Corte IDH dispostos ou preparados para patrocinar a questão por fatores variados, como ausência de formação, as dificuldades no reconhecimento do esgotamento dos recursos domésticos e, ainda, a necessidade de que o próprio Estado ou à CIDH, localizada em Washington, nos EUA, efetive o pedido à Corte IDH, localizada em São José, na Costa Rica. Por si só, os diferentes países envolvidos já tornariam a tutela judicial internacional bastante custosa.
Quanto às possibilidades das partes, existem obstáculos econômicos e psicológicos. Do ponto de vista econômico, litigar envolve necessariamente um dispêndio de recursos financeiros não apenas com as custas judiciais, mas também com o pagamento de honorários advocatícios, tempo etc. Tal fato possuía um efeito excludente dos mais pobres ou hipossuficientes das demandas judiciais, o que ensejou, em diversos países movimentos variados para garantir o acesso à justiça, desde estímulos ou imposições de advocacia privada pro bono aos necessitados até a criação de instituições públicas, à semelhança da Defensoria Pública com esse propósito específico.
Ademais, ainda há a questão da impossibilidade de acesso ao sistema judicial internacional pela mesma razão, visto que os recursos demandados para concretização de uma litigância internacional tendem a ser ainda maiores, visto que demanda juristas especializados, tempo mais extenso e pode demandar entre outros, viagens internacionais, tradutores ou intérpretes.
Tal questionamento leva a conclusão de que o resultado dado pela opinião consultiva sobre esse grupo vulnerável é, no mínimo, utópico, pois os mesmos mecanismos da sociedade civil que podem auxiliar no processo de levar seus casos a Corte Interamericana de Direitos Humanos, também não nos parecem capazes de superar o obstáculo econômico do acesso as esferas internas.
Do ponto de vista psicológico, aponta-se a ausência ou a carência de uma educação jurídica difundida que permita reconhecer a violação a determinados direitos, bem como do conhecimento dos instrumentos processuais e institucionais cabíveis para debelar tais violações. A aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação tem sido de fato uma limitação as possibilidades das partes. Se nem mesmo o direito constitucional – e os direitos fundamentais como conteúdo obrigatório – tem sido ensinado no ensino fundamental e médio nas escolas de direito, é difícil aparelhar os cidadãos com instrumentos para combater as violações.
A questão levantada pela CIDH, no que tange a impossibilidade de representação de um advogado, tendo como base medo de represália generalizado difundido no meio jurídico, fere os mesmos artigos que a situação anterior. A Corte IDH afirma, ainda nesta opinião consultiva, que o termo garantir presente no art. 1 da CADH, deve ser compreendido para além da lógica de direitos negativos (que proíbem o Estado de violar direitos), mas também como instituinte de direitos positivos (nos quais o Estado deve agir como fomentador desses direitos), de modo que o Estado deva garantir seu livre e pleno exercício.
A própria jurisprudência da Corte IDH serve para ilustrar esse temor difundido nos defensores de direitos humanos ameaçados, como nos casos, Radilha Pacheco vs. México (2005), Mack Chang vs. Guatemala (2003) ou Nogueira de Carvalho vs. Brasil (2006). O primeiro caso diz respeito a responsabilidade internacional do Estado pelo desaparecimento forçado de Rosendo Radilha Pacheco pelas Forças Armadas do México, bem como a falta de investigação e punição dos responsáveis. O segundo caso é do assassinato de Myrna Mack Chang na Guatemala em 11 de setembro de 1990 em um contexto político de grande instabilidade da guerra civil. Portanto, o cerceamento do direito à vida da antropóloga ocorreu em decorrência de um plano de inteligência militar guatemalteca, destinado a eliminar ‘inimigos” do Estado[12].
O último caso buscava a responsabilidade do Estado pela morte de Gilson Nogueira de Carvalho, advogado e defensor dos direitos humanos, após denunciar crimes cometidos por grupos de extermínio compostos por funcionários públicos e policiais civis. Por oportuno, é importante destacar a importância de se proteger os defensores de direitos humanos, cujo papel é de suma importância para o fortalecimento da democracia. Um caso que demonstra a utilização do entendimento consolidado por esta OC é o Cayara vs Perú (1993), que envolveu a morte de indivíduos integrantes (e não integrantes) do grupo “Sendero Luminoso” que atacaram um comboio do exército peruano, a Corte IDH entendeu justamente que “o sistema processual é um meio para realizar a justiça e esta não pode ser sacrificada por formalidades”. Afirmou que, dentro de certos limites de razoabilidade e, conservando um certo equilíbrio entre justiça e segurança, de modo que certas omissões ou atrasos podem ser relevados. Perceba-se, portanto, que os procedimentos em geral e o esgotamento dos recursos internos em particular devem ser lidos a partir de uma concepção substantiva de acesso à justiça.
Neste contexto destaca-se o posicionamento de Siddharta Legale e Eduardo Val[13] que apontam a necessidade de ler o esgotamento das instâncias internas não como uma mera necessidade de percorrer todos os recursos e instrumentos possíveis e imagináveis disponíveis no plano nacional, sob pena de tal leitura, formalista, positivista e burocrática termine por esvaziar a proteção dos Direitos Humanos.
Devemos assim sempre considerar a necessidade de se considerar as “circunstâncias particulares” de cada caso concreto, para que se verifique a regra do esgotamento, dado seu caráter não absoluto como pontua a própria Corte IDH. Isto significa que deve- se levar realisticamente em conta não só a existência formal de recursos no ordenamento jurídico interno do Estado em questão, mas também o “contexto geral jurídico e político” em que tais recursos operam e as “circunstâncias pessoais” dos demandantes.