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Opinião consultiva n° 14/94 da Corte IDH: controle ou aferição de convencionalidade?

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Siddharta Legale[1]
Ângela Vitória Andrade Gonçalves da Silva[2]

     A Opinião Consultiva n. 14/94 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) esclareceu as diferenças entre a competência consultiva e a contenciosa[3]. No âmbito da competência consultiva, a Corte IDH direciona a interpretação de tratados e normativas internas à proteção e respeito de direitos humanos nos Estados membros da Organização Americana.

     Seu conteúdo é de extrema relevância na doutrina do controle de convencionalidade, uma vez que estabeleceu as bases para pensar os limites e possibilidades de se reconhecer a incompatibilidade com a lei com a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Ainda assim, é controvertido se há ou não um verdadeiro controle de convencionalidade no âmbito da função consultiva.

     A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicitou a opinião consultiva, questionando o seguinte:

  • Quando um Estado parte na Convenção Americana de Direitos Humanos dita uma lei que viole manifestamente as obrigações que o Estado tenha contraído ao ratificar a Convenção, quais seriam os efeitos jurídicos dessa lei, tendo em vista as obrigações internacionais desse Estado?
  • Quando um Estado parte da Convenção dita uma lei cujo cumprimento por parte dos agentes ou funcionários desse Estado se traduz em uma violação manifesta da Convenção, quais são as obrigações e as responsabilidades dos funcionários ou agentes?

     Como exemplo de lei manifestamente contrária as obrigações assumidas na CADH, a CIDH mencionou o artigo 235 e 140 da Constituição do Peru de 1979, a qual previa pena de morte para crimes de traição à pátria em casos de guerra em contraposição as recomendações presentes no art. 4° da CADH.

     No dia 3 de janeiro de 1994, foi convocada pela Secretaria da Corte IDH uma audiência pública onde foram chamados os Estados do Brasil, Peru e Costa Rica, todos com considerações acerca da solicitação. O Estado do Peru analisou o pedido a partir de três fatores:

    a) levantou a falta de legitimidade da Comissão para solicitar a declaração de incompatibilidade de uma norma interna e a Convenção, cuja competência repousa apenas aos Estados;

     b) a ausência de legitimidade solicitação teria como consequência a ilegitimidade e incompetência da Corte para tomar conhecimento do fato;

     c) por fim, o Estado peruano, levanta que a analise de compatibilidade de uma lei interna escapa os alcances da Corte, prejudicando a matéria levantada.

     O Estado da Costa Rica reconheceu a admissibilidade da questão, todavia considerou que o debate já tenha sido encerrado na instância interamericana com a OC-03/83. O Estado brasileiro, por sua vez, defendeu a não violação de uma lei per si às obrigações convencionais, uma vez que para ele deveria haver a concretização dos danos.

     A Corte IDH entendeu, em primeiro lugar, que não haveria vício de legitimidade na solicitação em questão, uma vez que a CIDH não solicitou uma declaração de (in)compatibilidade, mas sim, em linhas gerais, uma opinião sobre os Estados e indivíduos que ditam e excutam leis contrárias a CADH.

      Em segundo, a Corte IDH respondeu às objeções dos Estados. Quanto à Costa Rica, expressou que a existência prévia da matéria no sistema interamericano – OC-3/83 – não seria fundamento suficiente para que ela se abstivesse de exercer sua competência.

     Com relação ao Estado brasileiro, estabeleceu a diferença entre “normas de aplicação imediata”, que caracterizam uma violação per si, e as “normas de aplicação não imediata”, que precisam de um dano para que seja caracterizada a violação, esclarecidas à frente.

     As leis mencionadas pela primeira pergunta da CIDH são caracterizadas como “normas de aplicação imediata”, uma vez que se caracterizam por sua violação manifesta à CADH. Esse tipo normativo, segundo o Tribunal, afetam as pessoas, na esfera individual e coletiva, que estão sujeitas à jurisdição estatal pela sua simples vigência.

     Vale, por fim, realizar um comentário de como tal decisão se conecta à doutrina do “controle de convencionalidade”, já que o termo não aparece nominalmente em momento algum da decisão. Esse termo só surgirá anos mais tarde no voto do magistrado Sérgio Garcia Ramirez Myrna Mack Chang vs. Guatemala (2003)[4].

     Na jurisprudência da Corte IDH propriamente dita, e não apenas em um voto concorrente, a afirmação de que leis que violem a a CADH “carecem de efeitos jurídicos” será reconhecida primeiro no caso Barrios Altos vs Peru (2001)[5] e batizada como controle de convencionalidade no caso Almonacid Arellanos vs Chile (2005).

     Há duas posições a esse respeito. A primeira do prof. Valério Mazzuoli que rejeita que, a rigor, se trate de um controle de convencionalidade. Alega que, embora haja a análise da compatibilidade entre a lei e a CADH, não existe responsabilidade internacional do Estado no âmbito das opiniões consultivas e, portanto, inexistiria um “controle” propriamente dito. No máximo, segundo o autor haveria uma “aferição de convencionalidade”[6].

     A segunda posição antagônica é defendida por Siddharta Legale em sua tese de doutorado[7]. Afirma que a expressão “aferição de convencionalidade” não consta na jurisprudência da Corte IDH e que as opiniões consultivas possuem efeitos obrigatórios, razão pela qual, ao serem invocadas em casos contenciosos posteriores, o seu conteúdo deverá ser respeitado e enseja, portanto, ainda que reflexamente uma responsabilidade internacional. Reconhece uma “vinculação reflexa” nas opiniões consultivas, razão pela qual defende a existência de um real controle de convencionalidade nesse âmbito.Tanto é assim que a Corte IDH enfatiza a aplicação da lei inconvencional. Confira-se:

57. A Corte conclui que o cumprimento por parte de agentes ou funcionários do Estado de uma lei manifestamente violatória da Convenção produz responsabilidade internacional do Estado. Em caso de que o ato de cumprimento constitua um crime internacional, gera também a responsabilidade internacional dos agentes ou funcionários que o executaram.

 

     A OC-14/94, nesse trecho, não chega a afirmar responsabilidade internacional direta pela lei violadora da CADH, tampouco reconhece que a opinião consultiva seja o âmbito adequado para fazê-lo. A opinião consultiva não gera responsabilidade internacional imediatamente ao reconhecer que uma lei é incompatível com a CADH. Mas o trecho demanda a responsabilização em caso de aplicação da lei que viola a CADH.

     Logo, se há uma opinião consultiva a reconhecer que determina lei é violadora, a tendência é que a sua aplicação também o seja, de modo que parece incoerente permitir que a Corte IDH, em um caso posterior, possa aplicar no caso concreto algo diferente do que proferiu em abstrato. Portanto, há uma vinculação reflexa das opiniões consultivas para casos contenciosos futuros.

     De fato, há particularidades no exercício da função consultiva da Corte IDH, mas essas particularidades são insuficientes para despi-las de um real controle de convencionalidade. Isso porque a primeira posição que nega o controle de convencionalidade nesse âmbito contraria o desenvolvimento progressivo, previsto no art. 26 da CADH, que é aplicável também ao próprio desenvolvimento das instituições do sistema interamericano de direitos humanos, o que se traduz na construção de decisões coerentes – consultivas e contenciosas – da própria Corte IDH.

     Entender que não se trata de um controle de convencionalidade fragiliza a proteção dos direitos humanos, ao não estimular um controle efetivo de leis que violem a CADH. É mais favorável a proteção dos direitos humanos a segunda posição e não a primeira. À luz do princípio pro persona, previsto no art. 29 da CADH, portanto, essa revela-se a melhor e mais atual interpretação da função consultiva da Corte IDH.


[1] Professor de Direito Constitucional da FND-UFRJ. Coordenador do Núcleo Interamericana de Direitos Humanos (NIDH-FND). E-mail: [email protected]

[2] Graduanda pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Avançado de Governador Valadares. Monitora de Direito Constitucional. Pesquisadora do NIDH-FND. E-mail: [email protected]

[3] Fundamento no artigo 64 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

[4] LEGALE, Siddharta; SILVA, Ângela Vitória Andrade Gonçalves da; PÊGAS, Lucas Tavares Pereira. Myrna Mack Chang vs Guatelama (2003) e o Controle de Convencionalidade: “dando nome aos bois”. 2018. Disponível em: https://nidh.com.br/myrna-mack-chang-vs-guatelama-2003-e-o-controle-de-convencionalidade-dando-nome-aos-bois/

[5] SILVA, Ângela Vitória Andrade Gonçalves da Silva; PÊGAS, Lucas Tavares Pereira Pêgas. Barrios Altos vs Peru (2001): as origens do controle de convencionalidade. Disponível em: https://nidh.com.br/barrios-altos-vs-peru-2001-as-origens-do-controle-de-convencionalidade/

[6] MAZZUOLI, Valério de Oliveira; GOMES, Luiz Flávio. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Pacto de San José da Costa Rica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 400

[7] LEGALE, Siddharta. A Corte Interamericana de Direitos Humanos como Tribunal Constitucional Transnacional. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado UERJ, 2017, p. 45-46.  No mesmo sentido, vale conferir a consistente argumentação da dissertação, sob a orientação do prof. Eduardo Val, cf. OLIVEIRA, Thiago Aleluia Ferreira de. O controle de convencionalidade dos tratados de direitos humanos em perspectiva comparada: Brasil, Argentina e Chile. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado UNESA-RJ, 2016, p. 46.

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